22.
Pouco sei desta memória
das vidas que desconheço
nem me sei voltar em mim
neste tempo em que padeço
a misturar todas as coisas
no que se mostra do avesso
nada sei do que me faço
nem da dor sei o começo
nunca vou onde me quero
nem me faço o que me peço
espero que chegue o dia
nesta noite em que me esqueço
minha palavra que morre
no silêncio mais espesso
vivo de mim a fugir
onde sempre permaneço
para dentro deste mar
onde em sonho me arremesso
de meu quarto sempre parto
a esperar por meu regresso
se viver é meu desejo
de morrer não me impeço
pouco sei desta memória
das vidas que em mim pereço
tantas mortes que perdidas
têm em mim seu endereço
os navios que partem breves
no oceano que escureço
este frio em minha pele
nesta blusa que não teço
quando vou ao meu encontro
mais em mim desapareço
ao fazer o meu discurso
as palavras emudeço
às vezes entro num parque
e ao ser feliz me entristeço
quanto mais me quero vivo
dentro de mim adoeço
não percorro meu jardim
pelas flores que feneço
vivo por mim a rezar
mas sempre destruo o terço
não olhar dentro de mim
é assim que me conheço
faço tudo em meu contrário
nesta escada que não desço
tiro o chapéu às pessoas
mas no gesto me despeço
só me vejo em minha ausência
encontrar-me não mereço
quando a andar evito as pedras
muito mais em mim tropeço
nada sei desta memória
no entanto resplandeço
assim se faz o poema
na medida que não meço
sei-me inútil na poesia
na palavra que adormeço
quanto mais explico o verso
quase nada esclareço
e quando me torno bárbaro
na verdade me enterneço
preciso dos meus cuidados
mas em mim me desguarneço
sei que a dor me mata aos poucos
mas com ela me envaideço
brilha-me o sol à janela
mas só a treva enalteço
no espelho em que me vejo
nada em mim me reconheço
falam-me os provérbios sábios
mas com eles ensurdeço
quando penso em nascer
sinto mais que envelheço
e quando me penso lúcido
muito mais me enlouqueço
quanto mais chega a manhã
mais em sombras anoiteço
quanto mais me desfiguro
mais comigo me pareço.
De “A memória do pai”. Coimbra, Portugal, 2006
Porque calais em mim tamanho pranto,
deixo que morra aqui vosso destino,
marca-me o ferimento em vosso espanto,
o que me aguarda em vós, por desatino.
Já sabereis, Inês, em vosso encanto,
o que da vida a fúria que previno
ao vos guardar em mim, mas sei, no entanto,
que esta dor vai além do que imagino.
Morta em silêncio, Inês, assim perdida,
vós rainha que sois no encantamento
que sempre tive em mim por vossa vida.
Em vossa morte, Inês, em desencanto,
a voz que some e grita meu lamento
na dor que guardo agora como um manto.
De “Inês”, Coimbra, 2007