Poeta
Álvaro
Alves
de Faria

Canal do poeta

LIVRO-ARBÍTRIO

UM POETA UNIVERSAL

GRAÇA CAPINHA
UNIVERSIDADE DE COIMBRA

Um livro que reúne inéditos de onze anos de escrita poética é, sem dúvida, algo inesperado em Álvaro Alves de Faria. Estes “Mil e Tantos Novos Poemas”, como se pode ler no subtítulo, parecem ser o trabalho do que foi sendo aperfeiçoado ao longo dos muitos anos sem que este poeta alguma vez tivesse deixado de publicar. Aqui, escrita como uma forma de respiração, poder-se-ia dizer. E uma respiração plena, sôfrega quase, como se a vida fosse pouca para tanta força criativa.
Li estes poemas como se de curtas legendas se tratassem para apor a tudo o muito que este poeta nos ofereceu, como se pequenos epigramas escritos sobre a sua própria obra. Não esquecer que epigrama significa, em grego, sobre-escrever, assim se sublinhando também o carácter metapoético que estes textos apresentam: poemas escritos sobre a própria poesia, escrita sobre a escrita. O que, em Álvaro Alves de Faria, significa também sobre a vida, porque, como Walt Whitman tão bem nos mostrou (e o nome de Whitman há-de ser evocado em Livro Arbítrio), o poema é a própria vida, escreve-se nela e com ela — uma canção de si, que nos convoca a todos e a todas, e que só existe nessa expansão do corpo e da consciência. Daí que o título faça todo o sentido no trocadilho criado entre “livre arbítrio” e “livro arbítrio”. Também, tal como Whitman anuncia logo no início da sua canção, há que suspender temporariamente as escolas e as crenças, e ser inteiramente livre na imensidão da existência (que também compara a um mar), tomando a responsabilidade individual das decisões sobre os caminhos a seguir. Assim a vida se faz escrita e a escrita se faz vida — assim mesmo, tautologicamente: um ser livro que significa um ser livre. No primeiro poema, mais longo, que terá por título, precisamente, “Arbítrio”, podemos ler: “O livre arbítrio o livro arbítrio o livre livro o livro livre”.
Porque o caminho faz-se ao andar, como diria António Machado, com a negatividade estrutural a que a escrita de Faria nos habituou, a paronomásia e o trocadilho fundam o paradoxo permanente de alguém que tomou um caminho de busca
— pelo sentido da existência e da escrita: “o livro arbítrio do que não é e ainda está por existir/como a sombra que invade o quintal e arranca as raízes das plantas/como dedos caídos de mãos desconhecidas.” (…) “a poesia que não sabe porque o poeta não sabe”.
A palavra desvenda-se a si mesma, conclui o poeta, mas o processo nunca termina, pois nunca o que se desvenda é definitivo. Resta continuar o caminho/a busca/a escrita/a vida, deixando para trás o que termina e levando em frente o sangue novo, penoso e difícil, da descoberta, metonimicamente representado nas “sílabas vermelhas” que encerram o primeiro poema.
O caminho se faz por “mares nunca dantes navegados”, com um “sal que vem de águas longínquas”, assim se ecoando dois grandes vultos da poesia em língua portuguesa, Camões e Pessoa, nomes evocados nalguns poemas da obra. De resto, essa intertextualidade há-de incluir muitos outros nomes de outros poetas com quem Faria dialoga no seu percurso literário. Quero, porém, destacar aqui o nome dos dois poetas portugueses, pois este é um poeta que disse um dia: “Quero ser um poeta português!” Filho de pais portugueses, o processo de construção, por vezes ambíguo e até ambivalente, da sua identidade poética parece-me estar indelevelmente marcado por essa condição vivida e por aquilo a que já chamei “uma memória da memória”, uma vez que se trata de alguém que cresceu e viveu num universo simbólico enraizado na memória de uma portugalidade, muitas vezes, mais imaginada do que real. Não tendo vivido Portugal além dessa memória até bastante tarde na sua vida, este “eu” poético reconhece-se na vivência de uma emigração que permanentemente se faz um “entre-estar”, entre cá e lá, existência sempre fora de um lugar, nómada e rizomática — como a da própria poesia que busca, que procura um sentido e um território em que o sujeito poético possa ancorar. Assim mesmo se poderia definir o cerne de toda a obra deste autor, incluindo a deste livro. Contudo, se é verdade que esta escrita se centra, de forma permanente e quase obsessiva, no “eu” e na natureza da própria poesia que o sustenta, estamos muito longe de uma escrita confessional, antes sendo confrontados pela difícil questionação ontológica e epistemológica que o processo de reterritorialização implica. E esse processo é sempre linguagem, na e pela linguagem, ou, diria mais, na e pela poesia — antes de qualquer linguagem. Diz o poeta: “A porta se fecha,/a porta se abre,/a porta à minha frente/a me separar do mundo,/a me dividir/em duas vidas,/a que está
dentro/e a que está fora.//Mas há a que está de lado,/à margem dela mesma,/à margem de mim,/dentro de mim,/fora de mim,/essa que não tem lugar.”
Essa porta, esse não-lugar, acaba por ser sempre o lugar dos poetas, o lugar de quem está “entre” a sua visão interior da realidade (dentro, também a da memória da memória de um Portugal mítico) e a realidade que as palavras nos permitem ver (fora, esse “real” que, afinal, não passa de uma construção social na linguagem), o que, no caso da vivência migrante, implica dois territórios diferentes, duas visões diferentes. A essa realidade construída pelas palavras que “vêem”/criam uma ordem no mundo chamou Rimbaud “cegueira”, aquela a que poetas como Faria também resistem — e o seu activismo político inclui-se nesta mesma resistência. Não esqueçamos que estamos perante o poeta do Sermão do Viaduto, que, na década de 60, em plena ditadura brasileira, inaugurou as leituras públicas em S. Paulo, o que lhe valeu várias detenções pela polícia. Todo o seu percurso foi sempre a prova provada que não há poética sem política, tal como não há política sem poética.
Mas, voltando às duas portas, que implicam essas duas vidas (a de dentro e a de fora), apõe-se uma terceira, aquela que só os poetas sabem estar lá, a porta de lado, à margem, dentro e fora, que é, mas que não tem lugar na linguagem e, por isso mesmo, ao não estar, não permite ver sem cegueira esse outro real, essa outra vida que se pressente como mais verdadeira, a da própria poesia. Por isso, podemos ler, num outro momento: “Há dois homens/que vivem em mim,/um que sou eu/e outro/que não conheço.//O que sou eu/vive a caminhar desertos,/enquanto o outro/anda à procura de si.//São dois homens/ao mesmo tempo:/um que só acredita,/outro que apenas mente.” Ou, num tom um pouco mais trágico: “Cansado/de não ter rumo/e de sempre/andar a esmo,/o poeta encontra a vida/exilando-se/de si mesmo.”
Este é o destino de quem aceita o desafio do anjo, uma das muitas imagens repetidas ao longo de Livro Arbítrio, desde logo no título de uma das secções que o constituem, Ângelus, mas também presente noutras obras do autor. Este é o anjo rilkeano (e Rilke é também um dos nomes referidos explicitamente em texto), o anjo das Elegias de Duíno, glorioso e terrífico, aquele que vem desafiar o poeta a resistir à vida vulgar, às forças obscuras e não-criativas da vida. O anjo como potência da beleza que acompanha o poeta na sua busca, que lhe exige um combate invencível, mas que eleva o ser humano (“O belo apenas é o começo do terrível, que só a custo podemos
suportar”, afirma-se na “Elegia I”). Esse combate encontramo-lo permanentemente na obra de Faria, um combate penoso e difícil, mas reconhecendo-se sempre também a sua grandeza: “Conheci um homem livre,/mas ele não tinha mãos./No entanto, tinha alma/e era um homem livre/com uma estrela no bolso.”. Não será por acaso que a primeira secção do livro tenha por título, precisamente, Ânima, alma, logo depois do poema introdutório a que comecei por me referir, “Arbítrio”. Ter alma, ter a capacidade da escolha, ser livre — eis o que de mais difícil e de mais grandioso tem a existência humana. O anjo está lá para que não seja possível esquecê-lo — e, por isso, este poeta assume o combate. Põe no bolso uma estrela — outra das muitas imagens repetidas na obra de Faria —, mesmo que metafórica, de modo a que não seja possível esquecer esse mundo outro de cujo pó viemos. E assim vai pela vida, ecoando Paul Celan (“Ich muss dich tragen” — tenho de te carregar), carregando esse peso, que é o do anjo e/ou o da estrela: “Carrego esta sombra/de vidro/que não se quebra.//Mas corta/por dentro, onde está.//Fere fundo no oceano/que tenho/como náufrago sem saída.//Carrego esta sombra/por dentro,/à deriva.”
Não surpreende, pois, que se escreva, logo num dos primeiros poemas do livro: “para se escrever um poema. Uma vida inteira.” Nem, tampouco, que a repetição, a lembrar Sísifo, surja nessa insistência. “Faz 50 anos/que faço o mesmo poema/e ainda falta/muito para terminar.” Ou mais adiante, num viés diferente do de Stein: “repetir-se,/repetir-se,/repetir-se sempre igual,/viver a mesma vida/no mesmo ponto final.” De facto, mesmo que isso não seja o cerne de todos os livros deste autor, estou tentada a afirmar que esta temática está sempre presente, de um ou outro modo. Como na música, como se tivéssemos repetidas variações sobre o mesmo tema — que é exactamente o que acontece em Livro Arbítrio. Se não, vejamos os títulos das quinze secções que constituem a obra e que, juntas, parecem querer definir a poesia e/ou o “eu” poético: Ânima, Ângelus, Âmago, Dádiva, Lâmina, Íngreme, Cálice, Álibi, Ária, Gótico, Lírico, Límpido, Êxtase, Ávido, Íntimo. Todas a iniciar-se com um poema longo, a servir de mote aos poemas mais curtos que se seguem.
De Ânima e Ângelus, falei já. Como também falei de como o âmago do poeta (também o seu íntimo) e o âmago do mundo são centrais numa composição poética que escolhe a dificuldade (lâmina, íngreme) e até a dor (cálice, metonimicamente a apontar para a dimensão cristã, tal como dádiva), o estar fora da ordem hegemónica do mundo
(álibi remetendo para esse crime), para, ávido, com palavras antigas (gótico), procurar a limpidez, a clareza e, aí, o êxtase. Há, nesta poesia, sempre, um enorme sentido do sagrado, da relação sagrada da poesia com a procura da verdade e do absoluto na existência humana. Diz o poeta: “Serei como um sacerdote/numa igreja/porque para Deus/os livros de poesia são sagrados”
Ária e Lírico remetem-nos, de imediato, para a música, para a canção de si, que comecei por referir. Muito se tem falado do lirismo da poesia de Álvaro Alves de Faria. Mas este lirismo, na linha do que venho afirmando, não é de índole confessional ou sentimentalóide, como muita da poesia que ainda se escreve na esteira do epigonismo romântico. Não há dúvidas de que esta poesia se inscreve na grande tradição romântica, mas na perspectiva de uma vertente crítica que a tem vindo a revisitar e a rever, percebendo que a obsessão com a centralidade do “eu” significou, nos grandes autores românticos, o exercício da sua própria inautenticidade. Esses autores tinham já a consciência penosa de que a linguagem falha sempre: não sendo o real, mas a sua representação, a linguagem, na sua imperfeição, não pode, não consegue, não diz o “eu”. Por isso, a insistência, a repetição, a necessidade obsessiva de voltar a tentar. Se assim não fosse, no primeiro poema, o “eu” estaria dito e não haveria a necessidade de o voltar a dizer.
Lirismo também no sentido de “lira”, aproximando-se do sentido de ária e apontando-se para a musicalidade desta escrita. Também nessa dimensão, a escrita de Faria é exemplar, recorrendo, antes de mais, à rima final, à rima interna, à aliteração, à anáfora e à epífora, mas também aos jogos homófonos, como o trocadilho, a paronomásia (a que já fiz referência) e o polyptoton. Este é um poeta “antigo”, no sentido de ser um técnico e um profissional de uma língua, o Português, que conhece profundamente e cujas sonoridades sabe trabalhar de forma extraordinária. E, de facto, estes poetas são hoje raros, pois o verso livre parece ter tomado todo o terreno. Mas a poesia começou aí, pois, na sua origem, era o bardo — aquele que conhecia e guardava para os vindouros o conhecimento da comunidade em padrões de som que o mantinham na memória. Este é, sim, um poeta antigo: “Não sou um poeta/de palavras novas.//Pelo contrário:/só uso as antigas.//De poucas palavras/sonho ainda/ser um poeta/de palavra nenhuma.”
E, de facto, nas últimas secções do livro, há poemas que têm versos cada vez mais curtos, por vezes, apenas com uma ou duas palavras, monossilábicas ou dissilábicas. Como se o poeta quisesse ver-se livre das palavras, para, finalmente, ver e/ou compreender o Absoluto, como se num encontro transparente com a Verdade: “Quero um poema/sobre o nada,/um poema/que é o nada,/ele mesmo/com suas palavras /desnecessárias.//Um poema sobre o nada,/o nada claro, nítido,/abrangente e espesso/como o nada deve ser.//O nada do nada,/o que não resta,/o que não há.//Quero esse poema,/o nada/para compreender.” Simultaneamente, sabe o risco que esse encontro transparente significaria, ou seja, a sua própria dissolução, tão desejada, mas tão temida: “Sendo agora/um ex-poeta/estou/definitivamente/livre de mim”, mas “Não ouço/o que/me digo,/mas sei/que corro/perigo/a andar/sempre/comigo.”
Para terminar, não posso deixar de referir o humor que esta poesia também nos oferece, porque, como o próprio poeta afirma: “a poesia não tem/cura e às vezes mata.//O lenitivo é tomar/uma vez por dia,/pela manhã,/uma xícara de lirismo/e um comprimido/de ironia.” Tal como T.S. Eliot queria, esta ironia distanciada — a que deu o nome de wit, na esteira dos poetas metafísicos ingleses do século XVII, que pretendiam demonstrar que a poesia também se escreve com a Razão e não, apenas, com a Imaginação, crença que, infelizmente, esse século das Luzes, inaugurador da nossa Modernidade, nos deixou por herança — é fundamental. O escritor pode, assim, olhar, sem paixão, sobre a sua própria composição poética. Muitos seriam os exemplos, mas escolho, não só por economia, o seguinte: “O que resta/de mim/é um ponto/de interrogação.//Meu problema/é gramatical.” Este poema lembrou-me de um outro dos meus poetas favoritos, Robert Duncan, que dizia que lutava contra a sintaxe para libertar a Sintaxe (“I struggle against syntax to liberate Syntax”). Essa é também a luta de Álvaro Alves de Faria: ser um ex-poeta, deixar a poesia, para chegar à Poesia, a verdadeira, aquela que, também como o poeta norte-americano acreditava, existe antes da linguagem.
Mas, sendo portuguesa, devo dizer que este é o meu favorito: “Quando/eu crescer/serei/navegador.//É ser/um poeta/do avesso.”
É isto que a grande poesia nos permite: inaugurar novas visões. Depois destes curtos versos, nunca mais pensarei na História portuguesa da mesma maneira. A este
poeta brasileiro e português, a este poeta tão universal no seu localismo, só tenho de agradecer pelo muito que a sua poesia me tem dado.
*
Graça Capinha
Professora Auxiliar do Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas – DLLC (Secção de Estudos Anglo-Americanos – SEAA)-Faculdade de Letras
Investigadora do Centro de Estudos Sociais (CES)
Co-coordenadora dos Programas de Doutoramento “Discursos: Cultura, História e Sociedade” (FLUC/FEUC/CES)
e de Mestrado em Escrita Criativa
Universidade de Coimbra

Ao Leitor

Onze anos De 2009 a 2020. Esse foi o tempo de trabalho para escrever este livro. Uma obra realizada paralelamente com outras, que foram publicadas especialmente em Portugal. Nesses 11 anos, segui com meus afazeres literários em vários períodos desse tempo de produção, particularmente de poemas. E sempre surgiam poemas que eu sentia que não pertenciam ao livro que eu estava escrevendo naquele momento. Colocava, então, no arquivo “1000 Poemas”. E, assim, os anos foram passando, com meu trabalho seguindo normalmente. E, normalmente, também, seguia este projeto dos “1000 poemas”. Cada vez que surgia um poema fora da linha do que eu escrevia naquele momento – e foram muitos –, ia para a pasta dos “1000 poemas”, como ficou marcada em mim. Onze anos de trabalho contínuo, porque escrevo muito, certamente o poeta que mais produz da minha Geração 60 de Poetas de São Paulo. E o que mais publica também. E foi assim, até que, repentinamente, surgiu a oportunidade de publicar o livro que se chamaria “1000 novos poemas”. Fui, então, ao arquivo e me assustei. Ali estavam muito mais de 1.000. Esses 11 anos de trabalho produziram, sem que eu percebesse, cerca de 1.350 poemas. A ordem era, então, cortar e escolher os 1.000 que fariam o livro. Não consegui. Senti muita dificuldade em retirar os poemas para chegar ao número certo. Trata-se de algo que não está em mim. Não sou uma pessoa prática. Nem um poeta prático. Diante dessa questão insuperável, a Ibis Libris Editora decidiu que publicaria todos os poemas escritos em todo esse período de 11 anos, todos inéditos. E assim foi feito. Os poemas foram divididos em 15 blocos, cada um identificado por uma palavra Estão todos aqui. Orgulho-me deste livro. Não sei que caminho vai tomar, mas orgulho-me dele. Não se alinharam em vários momentos de minha produção de poesia, mas eram e são poemas vivos que foram colocados num arquivo até chegar seu tempo. E esse tempo chegou. Publicar poesia no Brasil não é fácil. Imaginem um livro com mais 1.000 poemas. O livro está aqui. Agradeço, sinceramente, a todos os amigos que tornaram esta publicação possível. Sem essa ajuda, este livro que você tem nas mãos não existiria.

Álvaro Alves de Faria

OS EDITORES

Sobre Livros e Poesia

Tenho pensado no meu duplo papel de poeta e editora ao lado de Álvaro Alves de Faria. Conhecemo-nos faz tempo, desde que comecei a publicar meus poemas em 1980. Ele sempre muito assíduo e presente na divulgação dos meus novos livros, “Joio & trigo”, ou “Areal”, naquela época e, mais recentemente, escrevemos um, a quatro mãos, que deu muito certo, “Minha mão contém palavras que não escrevo”, em 2017, em que me apropriei dos versos longos e cadenciados de Álvaro e sua métrica livre, além do casaco e do guarda-chuva vermelho ou amarelo. Álvaro tem essa tática de se mudar para o poema do outro e de auscultá-lo e faz com que ouçamos o dele, do mesmo modo.

Fora os embates comuns de quem luta num espaço tão apertado como os poemas, aprendi a “ser outra” escrevendo ao lado de Álvaro. Primeiro, a poeta, acompanhando pari passu o que o autor de “O Sermão do Viaduto” tem a dizer. Depois, vem a editora, para moldar, formatar tudo isso em livro. Em última instância, o livro. Esse, sim, que terá a missão gloriosa de nos levar adiante. A poesia serve de ponto de apoio e de alavanca. E assim levantamos o mundo!

Thereza Christina Rocque da Motta, poeta e editora

A poesia é

Ao longo de quase 1.400 poemas que compõem o seu monumental “Livro-arbítrio”, Álvaro Alves de Faria diz, com pleno lirismo, muito sobre a poesia, o poema e o poeta. Pode-se dizer que a partir desse largo conjunto, tem-se um caminho para a elaboração de manuais líricos do Álvaro sobre esses assuntos e tantos outros.

Desse livro, com 844 páginas, colhe-se que a poesia é um ferimento sem cura, coisa rara, inútil, impossível, rude, nada e vulgar, mas também é mulher: “A poesia / é esse corte na veia / a respiração que para / a palavra / que se nega ao poema”  (121); “A poesia / é o exercício / da paixão” (137); “A poesia / é jogar-se / no abismo / sem saber voar”  (154); “A poesia / deforma as pessoas” (223); “A poesia / é um engano / que as pessoas / acreditam” (295); “A poesia / precisa de raiva / de gritos / de loucura” (337); “A poesia / mata o poema / com uma palavra / certeira” (436); “A poesia / é uma chaga acesa / que não fecha” (645). A poesia é e não é tudo isso e muitas outras coisas.

Por sua vez, o poema, enquanto veículo verbal da poesia, necessita de prova e “A prova / do poema / é sangue” (153); e pede tempo amadurecedor, daí que “Faz 50 an0os / que escrevo / o mesmo poema / e ainda falta muito / para terminar” (301); e além disso “Um poema é um crime imperdoável” (416), sem que o poeta se esqueça que “O poema / é apenas meu fim” (547) e ”Morto o poema / o poeta se cala, / a poesia se retira, / a palavra não fala” (577).

Por que o poeta escreve? “Escrevo poemas / de mim para mim / na minha intimidade, / para poder / falar comigo. / Pena que sou de mim / meu pior inimigo.” (45), “Ser poeta / é uma doença” (156); “Não me sinto bem / ao ser poeta / a vida inteira: / é como / se não tivesse vivido / o que tinha por direito” (576); “O poeta / se engana sempre / e diz acreditar / na poesia // Depois / sente remorso / pelo ferimento / que se fez” (694).

O poeta Álvaro Alves de Faria vive intensamente a poesia, mas em certas ocasiões se diz ex-poeta “Sendo agora / um ex-poeta / estou / definitivamente / livre de mim” (51); “Ex-poeta, / arrependo-me / de tudo que fiz na vida” (167); Sou meu próprio ex, / mas guardo alguma / recordação de mim. // Ex / não sei / exatamente do quê / mas ex. // Talovez / ex-poeta / ex-inimigo / ex-qualquer coisa. // Sou ex de mim. // Não desejo // qualquer reaproximação. //Ser ex é para sempre” (831).

“Livro-arbítrio” é um livro que percorre o caminho da dúvida (65, 143, 214, 486, 528, 549, 625 e 816), do silêncio (244, 293, 348, 357, 469, 529, 531, 538, 589, 699, 797, , 802 e 826), da solidão (300, 383, 447, 506, 596, 788, 808 e 810), da vida (159, 171, 272, 281, 289, 464, 471, 501, 535, 593, 603, 619, 657, 735 e 757),   da morte (156, 178, 272, 289, 327, 339, 517, 730 e 756) e da loucura (76, 134, 203, 221, 333, 337, 396, 423, 434, 490, 505, 564, 569, 589, 604, 649, 675, 697, 769), dos sonhos (231, 321, 549, 607 e 654), dentre tantos outros assuntos.

Esse livro exige fôlego do leitor, tal a riqueza de aberturas e de situações que Álvaro Alves de Faria apresenta, num amplo exercício de liberdade em sua abordagem poética sobre tudo e nada, entre a amarguridade e a amorosidade.

Valdir Rocha, artista plástico e editor

Testemunho existencial, testamento (po)ético

Ronaldo Cagiano

Em longa entrevista concedida ao escritor e ecrítico português João Rasteiro, publicada em 26/01/23 no “Sinal Aberto – Jornal de Interesse Público”, o poeta brasileiro Álvaro Alves de Faria, revisita seu labor literário, sua militância política, sua trajetória jornalítica, suas referências, confluências e influências. Nesse denso percurso, o que pode ser traduzido num testemunho de suas escrevivências e de seu empenho criativo que prestigou sempre a qualidade do texto e  o valor da linguagem, a ideia central de sua luta a(r)mada da/pela palavra concentra-se na sua íntima constatação de nunca se apartar do seu ofício, mesmo sabendo ser um solitário a clamar no deserto da desumanidade reinante. Sobretudo nesse mundo e na arte poética contaminados pela mediocridade, sua intervenção poéticae sua frontalidade crítica, imerso no seu silêncio e explicitando suas perplexidades, sabe que sua arte, ainda que negligenciada ou invisibiulizada pela crítica de algibeira hoje dominante, é o antídoto para enfrentar todo o lixo estético que domina o mercado editorial: “Busco a minha poesia no desespero de uma gente sem alternativa. Busco a minha poesia na lágrima que quase ninguém vê ou, se vê, faz de conta que não viu nada. Busco a minha poesia na palavra que ainda me é possível dizer. “

E é na possibilidade desse dizer desesperado, mas confiante no seu poder de catarse e exorcização dos dilemas, ainda que dessiludido com o nosso aviltado tempo, que Álvaro confronta a realidade avassaladora em sua mais recente obra, “Livro-arbítrio: Mil e tantos novos poemas” (Ed. Ibis Libris, Rio, 2022). Trata-se de um caudaloso volume de 843 pgs., que reúne uma safra poética que lhe consumiu mais de uma década de profunda imersão e apesenta-se como espelho de um mergulho na sua oficina criativa. Num outro viés, a obra reveste-se, num tenso exercício de hermenêutica existencial, humana, política e filosófica, documento que, a exemplo dos grandes romances de formação, é uma narrativa em versos de um trajeto como homem e como artista. Nele, seu olhar cirúrgico debruça-se sobre esses tempos de dilúvio e ruínas, em que vivemos um mimetismo de valores que joga por terra tudo o que é humano, há um enfrentamento de questões e temas que atravessam a nossa própria condição, como a passagem do tempo, nossa finitude e impotência diante do caos, a dor e da delícia dos afetos e do amor, o embate permanente contra o medo e o obscurantismo presentes em todos os campos, a luta contra a morte (do ser e da poesia), o que, em última análise culmina numa cartografia universal de nossas próprias angústias.

Álvaro Alves de Faria, em cinquenta anos de intensa produção (sua bibliografia percorre todos os gêneros literários, da poesia ao teatro, da crônica ao conto, da entrevista à crítica, da novela ao ensaio, da pauta jornalística às entrevistas e antologias) nunca se desviou de seu empenho estético e de seu compromisso ético. Autor que prima por uma escrita que nunca feriu seus princípios nem desviou-se dos valores que sempre defendeu, seja na vida privada, seja nos interstícios da militância política, esta que lhe valeu prisões e torturas e que sua poesia de resistência vem capitalizando, tendo como momento paradigma “O sermão do viaduto”, uma das páginas mais representativas da literatura de insurgência contra o golpe millitar que subjugou o país ao arbítrio por vinte e um anos, o que mereceu da crítica Nelly Novaes Coelho o minucioso estudo publicado em 1997, “O Sermãdo do viaduto (trinta anos depois) – Palavra poética de resistência ao caos, à morte, ao nada”.

“Livro-arbítrio”, por tudo que contém, carrega e representa, com sua carga simbólica ou metafórica, com a semântica de uma luta que não se exaure no corpo da palavra, mas define-se a partir do coração de um homem angustiado e sintonizado com as demandas e emergência de um mundo dividido, fissurado e prenhe de cicatrizes, converte-se num testamento individual sobre as contadições de uma coletividade afrontada. Mas o poeta não se recolhe, mas insiste, como um Sísifo, no seu arsenal-libello e proclama: “Canto ainda,/ porque/ minha voz existe,/ apesar/ da boca costurada.// Canto/ esse canto impossível/de cantar.// Apesar de tudo,/ canto.// Só eu me oiço,/ mas canto.// A poesia se perdeu,/ mas ainda canto,/ como a morrer/ em mim,/ no meu espanto.”

Poesia contra as crises, o desespero e a solidão, nesse volume o livre arbítrio da palavra esteriliza o arbítrio que modernamente insinua-se em nossas vidas mascarados de outras palavras, verbo alvariano harmoniza-se com o que já nos disse Campos de Carvalho: “Na poesia — mesmo em prosa — eu me vingo da minha frágil condição humana, tão rude e pesada, e posso ser profeta sem que me detenha a polícia ou me exterminem meus vizinhos da esquerda ou da direita, que não passam de pequenos burgueses. Graças à poesia posso mostrar-me nu em público, ridicularizar o ridículo (em mim, inclusive), tocar a fanfarra sem ser data nacional e fazer-me diabólico quando não acredito nem em Deus. Filtro-me através da poesia como uma água salobra e sem dignidade, cheia do lodo dos séculos e das algas impuras e despidas de mistério — eu que sou hipocampo. Faço da poesia o meu hino de revolta, mas também de perdão, que entoo em pleno silêncio e sem nenhum coro estranho, a não ser o dos meus fantasmas, que afinal são eu mesmo sob a forma de mil espelhos e de ecos inenarráveis.”  (in “Inéditos, Dispersos e Renegados, org. Geraldo Noel Arantes) .

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(*) Escritor mineiro de Cataguases, vive em Portugal.

Autorretratos

“Livro-Arbítrio” está dividido em 15 blocos, separados com estes desenhos de Álvaro Alves de Faria, que é também artista plástico, com várias exposições realizadas e participações em salões coletivos, oportunidade em que recebeu prêmios importantes. Álvaro deixou de expor, mas trabalha com desenhos para seu acervo particular. Aqui estão alguns dos autorretratos que fazem parte do livro.

OBRA MONUMENTAL

Por Alfredo Pérez Alencart

HOY TOCA BRASIL: POEMAS DEL NOTABLE ÁLVARO ALVES DE FARIA, ESCOGIDOS DE SU MONUMENTAL OBRA “LIBRO-ALBEDRÍO”, POR MÍ TRADUCIDOS AL CASTELLANO PARA CELEBRAR SUS OCHENTA AÑOS. ENCUENTRO DE POETAS IBEROAMERICANOS

Serie: Libros enviados o dedicados a Alfredo Pérez Alencart/ 25

Libro: “Livro-arbítrio: mil e tantos poemas (2009-2020)”, Exlibris / Rio de Janeiro y Pantemporâneo/ Sao Paulo, 2022, pp. 844).

Pinchar este enlace de la revista Crear en Salamanca:

https://www.crearensalamanca.com/poemas-del-brasileno…/

En 2008 le dedicamos el X Encuentro de Poetas Iberoamericanos. Por ello fue grato recibir este último libro suyo, escrito a lo largo de 11 años. Tiene prólogo de Graça Capinha, profesora de la Universidad de Coimbra y breves textos de solapas y contraportada firmados por Lygia Fagundes Telles, Inês Pedrosa yAffonso Romano de Sant’Ana. De los mil y tantos poemas, seleccioné uno de cada sección en los que vertebró su magistral aporte.

Para mi gusto, Álvaro Alves de Faria (São Paulo, 1942), una de las voces esenciales de su país, donde, en años recientes, recibió dos importantes reconocimientos al conjunto de su obra: “Premio de Poesía y Liberdad Alceu Amoroso Lima” (Río de Janeiro, 2018) y “Premio Guilherme de Almeida de Poesía” (São Paulo, 2019). El poeta es autor de más de 50 libros en Brasil, especialmente en poesía. También es autor de obras de teatro. Otros 22 libros los ha publicado en Portugal, además de los 7 aparecidos en España. Alves de Faria se considera un militante de la poesía desde los tiempos de El sermón del Viaducto, en los años 60, cuando realizó 9 recitales en el Viaducto do Chá, en São Paulo, con micrófono y cuatro altoparlantes. Por este motivo fue detenido cinco veces por la Policía. El Sermón del Viaducto acabó siendo prohibido. Hacia finales de los 70 la censura también prohibió su libro 4 Cantos de Pavor y Algunos Poemas Desesperados. En los años 80 su obra de teatro Sálvese quien pueda que el jardín se está incendiando, que recibiera el Premio Anchieta de Teatro, en su momento uno de los más importantes de Brasil, también fue prohibida de llevar a escena durante ocho años. En 1969 el poeta estuvo preso durante 11 meses como subversivo y por dibujar los carteles del entonces Partido Socialista Brasileño. Tres años después recibió un disparo en el oído, cuya bala todavía está alojada en su cabeza, como herencia de la dictadura militar brasileña.

POEMAS DEL BRASILEÑO ÁLVARO ALVES DE FARIA TRADUCIDOS POR A. P. ALENCART, DE SU ÚLTIMA OBRA: ‘LIBRO-ALBEDRÍO. MIL Y TANTOS NUEVOS POEMAS’

Por Ces

Álvaro Alves de Faria leyendo en el Teatro Liceo (2014. foto de José Amador Martín)

Crear en Salamanca tiene la satisfacción de publicar estas traducciones inéditas realizadas por el poeta Alfredo Pérez Alencart, seleccionando poemas de la nueva obra del notable poeta brasileño Álvaro Alves de Faria, Livro-arbítrio: mil e tantos poemas (2009-2020, Exlibris / Rio de Janeiro y Pantemporâneo/ Sao Paulo, pp. 844). Faria acaba de cumplir ochenta años y en 2008 se le dedicó el X Encuentro de Poetas Iberoamericanos de Salamanca.

 

ALBEDRÍO

Mi libre albedrío de irme y volver cuando quiera,

como si nada quisiera y fuese en mí lo que no soy,

eso que podría ser cuando todo estuviese sin nada.

 

El libro-albedrío, la poesía que me es dada a escribir,

como si me callase para siempre en tal sentido

que nada fuese como antes y conmigo llevase mi embarcación

por mares nunca antes navegados,

un océano de escamas doradas en cada verso, en cada palabra,

especialmente las que están olvidadas para siempre.

 

El libro-albedrío me silencia por dentro donde no me oigo más,

y me avanza en mi libertad,

esa que guardo en una mancha de sangre,

y en las uñas de los pies arrancadas de los pies

cuando todas las cosas eran nocturnas,

de tal oscuridad pegada en la piel y en el espíritu

deshaciéndose entre las paredes y escalones

y volvía a nacer en mí como una rosa de alambre de púas

 

Me sala el mar los ojos con esa sal que viene de aguas lejanas,

donde todo se pierde guardando los mojados atardeceres de los temporales.

La poesía es una herida sin cura,

pues no basta con cuidar de los cortes de todas las horas

en los relojes extraviados.

El albedrío ha de ser libre como el libro habrá de ser un día tal vez un poema,

el libro-albedrío de lo que no es y todavía está por existir,

como la sombra que invade el patio y arranca las raíces de las plantas,

como dedos caídos de manos desconocidas.

 

El libre-albedrío

el libro-albedrío

el libre libro

el libro libre

 

el poema que se termina, porque todo se termina

y la poesía que no sabe por qué el poeta no sabe,

así como saben los magos y los duendes,

esa palabra que se devela a sí misma,

y deja en mí las sílabas rojas de lo que siempre termina.

De ÁNIMA

Me dejé en mi

estante de olvidos

y salí en mi búsqueda

preguntando a los vecinos

si me habían visto por algún sitio.

 

Nadie me vio

en sitio alguno como debía ser.

 

En mi estante de olvidos

permanezco olvidado

esperando de que yo me acuerde de mí.

 

 

De ÁNGELUS

Señora de la Agonía

mira por mí

en esta noche,

en este día.

 

Señora de la Agonía

quita de mí

todos los dolores

de esta muerte

que comienza.

 

Señora de la Agonía,

sálvame de mí

que mal me pronunciaba.

 

Señora,

puedes dejarme solo.

pero déjame

con la poesía.

 

 

De INTERIOR

No sé si vivo

por la poesía

o por la locura,

lo cual no importa,

ya que para las dos dolencias

no tengo cura.

Alves de Faria recibiendo el reconocimiento de Huésped Distinguido de Salamanca de manos del alcalde Julián Lanzarote (2008. Foto de Jacqueline Alencar)

De DÁDIVA

Entro enfurecido

en la pintura

de Cézanne

en el Louvre

 

Cézanne me mira

y yo miro a Cézzanne.

 

Con cinco

pinceladas azules,

él me hace desaparecer

del cuadro y de la vida.

 

 

De CUCHILLA

La poesía

que me recuerda

es la misma

que me olvida,

la cual, algunas veces,

me enloquece

y en otras

es mi oración.

 

 

De EMPINADO

Hay un pájaro

que queda conmigo

a la mesa

junto a mis manos.

 

Un plato

de algunos sueños

con gusto de licor.

 

El pájaro

que pica

el pedazo de pan.

 

Solo yo lo veo,

como si así

me pidiese,

como si nada hubiese

ni existiese.

Los poetas Alfredo Pérez Alencart y Álvaro Alves de Faria en Salamanca (foto de Jacqueline Alencar)

De CÁLIZ

Las mujeres que me amaron

eran tristes como una tarde.

 

Todas partieron de mí

y fueron lejos de ellas.

 

Algunas eran desconocidas,

otras yo las olvidé.

 

Muchas dejaron marcas,

aquellas que nunca sentí.

 

 

 

De PRETEXTO

Cuando converso

con mi padre

en Portugal,

hablamos en silencio.

 

Mi padre se fue

en una tarde de mayo

mientras llovía

en las blancas paredes

de la habitación

 

Cerré los ojos

de mi padre

y miré por la ventana.

De ARIA

Me dices de ti

todo

lo que no quiero saber.

 

Me dices de ti

todo lo que no sé

y no me interesa

saber.

 

Me dices

lo que no quieres

decirme.

 

Me dices de ti

lo que nunca

me hablarías.

 

Quedaré en silencio

y prometo

no oír nada

de lo que me digas.

 

 

 

De GÓTICO

Te invito

a visitar un parque

donde podremos

dormir sin que nadie

sepa de nosotros.

 

Te invito

a ver los pájaros

al crepúsculo

de una tarde

que desapareció.

 

Te invito

a llorar conmigo

sin ninguna culpa,

tal vez en una iglesia

o en una plaza.

Juan Carlos Martín, Álvaro Alves de Faria y Leocádia Regalo (foto de Jacqueline Alencar)

De LÍRICO

que se cante

ese momento

porque de pronto

el amor

desaparece

de tu espejo,

de tu rostro.

 

Que se cante

siempre ese amor

hasta el fin del mundo,

o dentro de la habitación,

o en las calles perdidas.

 

Que se cante siempre

ese amor,

tu amor

que cultivas en silencio,

sin palabras,

como si nada existiera.

 

 

De LÍMPIDO

Las piedras de Samaria

herirán mis pies

y cortarán mis sandalias

de andariego en las montañas.

 

Me hiero con mi cayado,

como si fuera un profeta

de todo lo que se perdió,

de las serpientes y de los ángeles.

 

Las piedras de Samaria

herirán mis pies descalzos

dejando un trazo rojo

tras de mí.

 

Ahora solo tengo la sombra,

las ropas rasgadas,

heridas profundas,

lo que resta de mí.

Álvaro Alves de Faria y Antonio Colinas en un acto del XVIII Encuentro de Poetas Iberoamericanos (Foto de Jacqueline Alencar, 2015)

De ÉXTASIS

Esa bailarina

que llora

en mí

las notas

de Chopin,

también me hace

dormir

en el vals

que me corta

por la mitad

en un dolor

que nadie

nunca sintió.

 

 

De ÁVIDO

Aquí yace

un hombre que nunca

estuvo cerca de la muerte,

que nunca

pensó en morir

y amó la vida

por encima d

e todas las cosas.

Álvaro Alves de Faria y Luis Borja

De ÍNTIMO

Soy mi propio ex,

pero guardo algún

recuerdo de mí.

 

Ex

No sé

Exactamente de qué,

Pero ex.

 

Tal vez

ex-poeta

ex-enemigo

ex-cualquier cosa.

 

Soy ex de mí.

 

No deseo ninguna

reaproximación.

 

Ser ex es para siempre.

Alves de Faria, Alencart, Tamura ,Cyro de Mattos y Fragoso, en Salamanca (foto de Jacqueline Alencar, 2013)

FOTOS

Poeta Álvaro Alves de Faria lança ‘Livro-Arbítrio’, obra com mais de mil poemas, amanhã em São Paulo

Livro trata de temas que cercam a vida do homem, como a solidão: ‘A pandemia me fez muito mal, e essa angústia passou para os poemas’; lançamento será na Casa das Rosas, a partir das 18h

Por Jovem Pan

Lançamento de “Livro-Arbítrio”, de Álvaro Alves de Faria, será realizado na quinta-feira, 29, a partir das 18h, na Casa das Rosas, na avenida Paulista, 37, em São Paulo

O poeta Álvaro Alves de Faria, um dos nomes mais significativos da geração dos anos 60 da poesia brasileira, lançará o livro “Livro-Arbítrio – Mil e tantos novos poemas”, pelas editoras Ibis Libris, do Rio, e Pantemporâneo, de São Paulo, na quinta-feira, 29, na capital paulista. São 1.500 poemas escritos em 11 anos de trabalho. Segundo o autor, a intenção era escrever um livro com 1.000 poemas, mas o arquivo foi sendo sempre alimentado, ao longo dos anos, ultrapassando a meta. A obra, de 900 páginas, traz longo ensaio da escritora e professora de literatura Graça Capinha, da Universidade de Coimbra, Portugal, com o título “Um Poeta Universal”. O lançamento de “Livro-Arbítrio” será realizado na quinta-feira, 29, a partir das 18h, na Casa das Rosas, na avenida Paulista, 37, em São Paulo.
“Nunca acreditei que tal livro seria um dia publicado. Quando vi que já tinham cerca de 1.500 poemas, iniciei, então, o trabalho de cortar para chegar a 1.000, como era o projeto inicial. Mas, confesso, não consegui. Assim, as editoras decidiram publicar o arquivo inteiro de poemas escritos de 2009 a 2020”, afirma o autor. Os 1.500 poemas inéditos foram divididos em 15 blocos, separados cada um por um autorretrato, uma vez que o poeta também se dedica às artes plásticas. “Orgulho-me deste livro. Não sei qual caminho vai tomar, mas orgulho-me dele. Não se alinharam em vários momentos de minha produção de poesia, mas eram e são poemas vivos que foram colocados num arquivo até chegar o seu tempo. E esse tempo chegou. Publicar poesia no Brasil não é fácil. Imaginem um livro com mais 1.000 poemas”, completa o poeta.
Quase todos os poemas do livro foram escritos na primeira pessoa, explica o autor. “Poemas com achados poéticos sobre todas as coisas que cercam a vida do homem, mas, sobretudo, a solidão nos tempos atuais, quando tudo parece perdido e os valores estão invertidos em tudo. Foram 11 anos de trabalho, mas dediquei-me mais ao livro durante a pandemia, que me fez muito mal e essa angústia passou para os poemas, reproduzindo a perplexidade diante de uma situação interminável. Mas, antes de tudo, os poemas valorizaram os achados poéticos com as palavras tantas vezes com duplo sentido, o que resultou numa experiência que me levou onde nunca imaginei que a poesia poderia me levar”, completa.
Álvaro é autor de mais de 60 livros no Brasil, entre romances, ensaios, livros de entrevistas literárias e, sobretudo, poesia. Tem 23 livros publicados em Portugal, 8 na Espanha e 1 na Itália. É também autor de teatro. Recebeu, ao longo dos anos, alguns dos principais prêmios literários do país. Destacam-se, além dos dois Jabutis, três premiações especiais da Associação de Críticos de Arte de São Paulo (APCA), o Prêmio Poesia e Liberdade Alceu Amoroso Lima, em 2018, e o Prêmio de Poesia Guilherme de Almeida, em 2019 — estes dois últimos pelo conjunto da obra.

LIVRO-ARBÍTRIO, DE ÁLVARO ALVES DE FARIA, POETA UNIVERSAL

Ed Caliban – Sep 20

alvaro

Graça Capinha (*)

Um livro que reúne inéditos de onze anos de escrita poética é, sem dúvida, algo inesperado em Álvaro Alves de Faria. Este “Livro-Arbítrio -Mil e Tantos Novos Poemas”, como se pode ler no subtítulo, parece ser o trabalho do que foi sendo aperfeiçoado ao longo dos muitos anos sem que este poeta alguma vez tivesse deixado de publicar. Aqui, escrita como uma forma de respiração, poder-se-ia dizer. E uma respiração plena, sôfrega quase, como se a vida fosse pouca para tanta força criativa.

Li estes poemas como se de curtas legendas se tratassem para apor a tudo o muito que este poeta nos ofereceu, como se pequenos epigramas escritos sobre a sua própria obra. Não esquecer que epigrama significa, em grego, sobre-escrever, assim se sublinhando também o carácter metapoético que estes textos apresentam: poemas escritos sobre a própria poesia, escrita sobre a escrita. O que, em Álvaro Alves de Faria, significa também sobre a vida, porque, como Walt Whitman tão bem nos mostrou (e o nome de Whitman há-de ser evocado em Livro-Arbítrio), o poema é a própria vida, escreve-se nela e com ela — uma canção de si, que nos convoca a todos e a todas, e que só existe nessa expansão do corpo e da consciência. Daí que o título faça todo o sentido no trocadilho criado entre “livre arbítrio” e “livro arbítrio”. Também, tal como Whitman anuncia logo no início da sua canção, há que suspender temporariamente as escolas e as crenças, e ser inteiramente livre na imensidão da existência (que também compara a um mar), tomando a responsabilidade individual das decisões sobre os caminhos a seguir. Assim a vida se faz escrita e a escrita se faz vida — assim mesmo, tautologicamente: um ser livro que significa um ser livre. No primeiro poema, mais longo, que terá por título, precisamente, “Arbítrio”, podemos ler: “O livre arbítrio o livro arbítrio o livre livro o livro livre”.

Porque o caminho faz-se ao andar, como diria António Machado, com a negatividade estrutural a que a escrita de Faria nos habituou, a paronomásia e o trocadilho fundam o paradoxo permanente de alguém que tomou um caminho de busca — pelo sentido da existência e da escrita: “o livro arbítrio do que não é e ainda está por existir/como a sombra que invade o quintal e arranca as raízes das plantas/como dedos caídos de mãos desconhecidas.” (…) “a poesia que não sabe porque o poeta não sabe”.

A palavra desvenda-se a si mesma, conclui o poeta, mas o processo nunca termina, pois nunca o que se desvenda é definitivo. Resta continuar o caminho/a busca/a escrita/a vida, deixando para trás o que termina e levando em frente o sangue novo, penoso e difícil, da descoberta, metonimicamente representado nas “sílabas vermelhas” que encerram o primeiro poema.

O caminho se faz por “mares nunca dantes navegados”, com um “sal que vem de águas longínquas”, assim se ecoando dois grandes vultos da poesia em língua portuguesa, Camões e Pessoa, nomes evocados nalguns poemas da obra. De resto, essa intertextualidade há-de incluir muitos outros nomes de outros poetas com quem Faria dialoga no seu percurso literário. Quero, porém, destacar aqui o nome dos dois poetas portugueses, pois este é um poeta que disse um dia: “Quero ser um poeta português!” Filho de pais portugueses, o processo de construção, por vezes ambíguo e até ambivalente, da sua identidade poética parece-me estar indelevelmente marcado por essa condição vivida e por aquilo a que já chamei “uma memória da memória”, uma vez que se trata de alguém que cresceu e viveu num universo simbólico enraizado na memória de uma portugalidade, muitas vezes, mais imaginada do que real. Não tendo vivido Portugal além dessa memória até bastante tarde na sua vida, este “eu” poético reconhece-se na vivência de uma emigração que permanentemente se faz um “entre-estar”, entre cá e lá, existência sempre fora de um lugar, nómada e rizomática — como a da própria poesia que busca, que procura um sentido e um território em que o sujeito poético possa ancorar. Assim mesmo se poderia definir o cerne de toda a obra deste autor, incluindo a deste livro. Contudo, se é verdade que esta escrita se centra, de forma permanente e quase obsessiva, no “eu” e na natureza da própria poesia que o sustenta, estamos muito longe de uma escrita confessional, antes sendo confrontados pela difícil questionação ontológica e epistemológica que o processo de reterritorialização implica. E esse processo é sempre linguagem, na e pela linguagem, ou, diria mais, na e pela poesia — antes de qualquer linguagem. Diz o poeta: “A porta se fecha,/a porta se abre,/a porta à minha frente/a me separar do mundo,/a me dividir/em duas vidas,/a que está

dentro/e a que está fora.//Mas há a que está de lado,/à margem dela mesma,/à margem de mim,/dentro de mim,/fora de mim,/essa que não tem lugar.”

Essa porta, esse não-lugar, acaba por ser sempre o lugar dos poetas, o lugar de quem está “entre” a sua visão interior da realidade (dentro, também a da memória da memória de um Portugal mítico) e a realidade que as palavras nos permitem ver (fora, esse “real” que, afinal, não passa de uma construção social na linguagem), o que, no caso da vivência migrante, implica dois territórios diferentes, duas visões diferentes. A essa realidade construída pelas palavras que “vêem”/criam uma ordem no mundo chamou Rimbaud “cegueira”, aquela a que poetas como Faria também resistem — e o seu activismo político inclui-se nesta mesma resistência. Não esqueçamos que estamos perante o poeta do Sermão do Viaduto, que, na década de 60, em plena ditadura brasileira, inaugurou as leituras públicas em S. Paulo, o que lhe valeu várias detenções pela polícia. Todo o seu percurso foi sempre a prova provada que não há poética sem política, tal como não há política sem poética.

Mas, voltando às duas portas, que implicam essas duas vidas (a de dentro e a de fora), apõe-se uma terceira, aquela que só os poetas sabem estar lá, a porta de lado, à margem, dentro e fora, que é, mas que não tem lugar na linguagem e, por isso mesmo, ao não estar, não permite ver sem cegueira esse outro real, essa outra vida que se pressente como mais verdadeira, a da própria poesia. Por isso, podemos ler, num outro momento: “Há dois homens/que vivem em mim,/um que sou eu/e outro/que não conheço.//O que sou eu/vive a caminhar desertos,/enquanto o outro/anda à procura de si.//São dois homens/ao mesmo tempo:/um que só acredita,/outro que apenas mente.” Ou, num tom um pouco mais trágico: “Cansado/de não ter rumo/e de sempre/andar a esmo,/o poeta encontra a vida/exilando-se/de si mesmo.”

Este é o destino de quem aceita o desafio do anjo, uma das muitas imagens repetidas ao longo de Livro Arbítrio, desde logo no título de uma das secções que o constituem, Ângelus, mas também presente noutras obras do autor. Este é o anjo rilkeano (e Rilke é também um dos nomes referidos explicitamente em texto), o anjo das Elegias de Duíno, glorioso e terrífico, aquele que vem desafiar o poeta a resistir à vida vulgar, às forças obscuras e não-criativas da vida. O anjo como potência da beleza que acompanha o poeta na sua busca, que lhe exige um combate invencível, mas que eleva o ser humano (“O belo apenas é o começo do terrível, que só a custo podemos suportar”, afirma-se na “Elegia I”). Esse combate encontramo-lo permanentemente na obra de Faria, um combate penoso e difícil, mas reconhecendo-se sempre também a sua grandeza: “Conheci um homem livre,/mas ele não tinha mãos./No entanto, tinha alma/e era um homem livre/com uma estrela no bolso.”. Não será por acaso que a primeira secção do livro tenha por título, precisamente, Ânima, alma, logo depois do poema introdutório a que comecei por me referir, “Arbítrio”. Ter alma, ter a capacidade da escolha, ser livre — eis o que de mais difícil e de mais grandioso tem a existência humana. O anjo está lá para que não seja possível esquecê-lo — e, por isso, este poeta assume o combate. Põe no bolso uma estrela — outra das muitas imagens repetidas na obra de Faria — , mesmo que metafórica, de modo a que não seja possível esquecer esse mundo outro de cujo pó viemos. E assim vai pela vida, ecoando Paul Celan (“Ich muss dich tragen” — tenho de te carregar), carregando esse peso, que é o do anjo e/ou o da estrela: “Carrego esta sombra/de vidro/que não se quebra.//Mas corta/por dentro, onde está.//Fere fundo no oceano/que tenho/como náufrago sem saída.//Carrego esta sombra/por dentro,/à deriva.”

Não surpreende, pois, que se escreva, logo num dos primeiros poemas do livro: “para se escrever um poema. Uma vida inteira.” Nem, tampouco, que a repetição, a lembrar Sísifo, surja nessa insistência. “Faz 50 anos/que faço o mesmo poema/e ainda falta/muito para terminar.” Ou mais adiante, num viés diferente do de Stein: “repetir-se,/repetir-se,/repetir-se sempre igual,/viver a mesma vida/no mesmo ponto final.” De facto, mesmo que isso não seja o cerne de todos os livros deste autor, estou tentada a afirmar que esta temática está sempre presente, de um ou outro modo. Como na música, como se tivéssemos repetidas variações sobre o mesmo tema — que é exactamente o que acontece em Livro Arbítrio. Se não, vejamos os títulos das quinze secções que constituem a obra e que, juntas, parecem querer definir a poesia e/ou o “eu” poético: Ânima, Ângelus, Âmago, Dádiva, Lâmina, Íngreme, Cálice, Álibi, Ária, Gótico, Lírico, Límpido, Êxtase, Ávido, Íntimo. Todas a iniciar-se com um poema longo, a servir de mote aos poemas mais curtos que se seguem.

De Ânima e Ângelus, falei já. Como também falei de como o âmago do poeta (também o seu íntimo) e o âmago do mundo são centrais numa composição poética que escolhe a dificuldade (lâmina, íngreme) e até a dor (cálice, metonimicamente a apontar para a dimensão cristã, tal como dádiva), o estar fora da ordem hegemónica do mundo

(álibi remetendo para esse crime), para, ávido, com palavras antigas (gótico), procurar a limpidez, a clareza e, aí, o êxtase. Há, nesta poesia, sempre, um enorme sentido do sagrado, da relação sagrada da poesia com a procura da verdade e do absoluto na existência humana. Diz o poeta: “Serei como um sacerdote/numa igreja/porque para Deus/os livros de poesia são sagrados”

Ária e Lírico remetem-nos, de imediato, para a música, para a canção de si, que comecei por referir. Muito se tem falado do lirismo da poesia de Álvaro Alves de Faria. Mas este lirismo, na linha do que venho afirmando, não é de índole confessional ou sentimentalóide, como muita da poesia que ainda se escreve na esteira do epigonismo romântico. Não há dúvidas de que esta poesia se inscreve na grande tradição romântica, mas na perspectiva de uma vertente crítica que a tem vindo a revisitar e a rever, percebendo que a obsessão com a centralidade do “eu” significou, nos grandes autores românticos, o exercício da sua própria inautenticidade. Esses autores tinham já a consciência penosa de que a linguagem falha sempre: não sendo o real, mas a sua representação, a linguagem, na sua imperfeição, não pode, não consegue, não diz o “eu”. Por isso, a insistência, a repetição, a necessidade obsessiva de voltar a tentar. Se assim não fosse, no primeiro poema, o “eu” estaria dito e não haveria a necessidade de o voltar a dizer.

Lirismo também no sentido de “lira”, aproximando-se do sentido de ária e apontando-se para a musicalidade desta escrita. Também nessa dimensão, a escrita de Faria é exemplar, recorrendo, antes de mais, à rima final, à rima interna, à aliteração, à anáfora e à epífora, mas também aos jogos homófonos, como o trocadilho, a paronomásia (a que já fiz referência) e o polyptoton. Este é um poeta “antigo”, no sentido de ser um técnico e um profissional de uma língua, o Português, que conhece profundamente e cujas sonoridades sabe trabalhar de forma extraordinária. E, de facto, estes poetas são hoje raros, pois o verso livre parece ter tomado todo o terreno. Mas a poesia começou aí, pois, na sua origem, era o bardo — aquele que conhecia e guardava para os vindouros o conhecimento da comunidade em padrões de som que o mantinham na memória. Este é, sim, um poeta antigo: “Não sou um poeta/de palavras novas.//Pelo contrário:/só uso as antigas.//De poucas palavras/sonho ainda/ser um poeta/de palavra nenhuma.”

E, de facto, nas últimas secções do livro, há poemas que têm versos cada vez mais curtos, por vezes, apenas com uma ou duas palavras, monossilábicas ou dissilábicas. Como se o poeta quisesse ver-se livre das palavras, para, finalmente, ver e/ou compreender o Absoluto, como se num encontro transparente com a Verdade: “Quero um poema/sobre o nada,/um poema/que é o nada,/ele mesmo/com suas palavras /desnecessárias.//Um poema sobre o nada,/o nada claro, nítido,/abrangente e espesso/como o nada deve ser.//O nada do nada,/o que não resta,/o que não há.//Quero esse poema,/o nada/para compreender.” Simultaneamente, sabe o risco que esse encontro transparente significaria, ou seja, a sua própria dissolução, tão desejada, mas tão temida: “Sendo agora/um ex-poeta/estou/definitivamente/livre de mim”, mas “Não ouço/o que/me digo,/mas sei/que corro/perigo/a andar/sempre/comigo.”

Para terminar, não posso deixar de referir o humor que esta poesia também nos oferece, porque, como o próprio poeta afirma: “a poesia não tem/cura e às vezes mata.//O lenitivo é tomar/uma vez por dia,/pela manhã,/uma xícara de lirismo/e um comprimido/de ironia.” Tal como T.S. Eliot queria, esta ironia distanciada — a que deu o nome de wit, na esteira dos poetas metafísicos ingleses do século XVII, que pretendiam demonstrar que a poesia também se escreve com a Razão e não, apenas, com a Imaginação, crença que, infelizmente, esse século das Luzes, inaugurador da nossa Modernidade, nos deixou por herança — é fundamental. O escritor pode, assim, olhar, sem paixão, sobre a sua própria composição poética. Muitos seriam os exemplos, mas escolho, não só por economia, o seguinte: “O que resta/de mim/é um ponto/de interrogação.//Meu problema/é gramatical.” Este poema lembrou-me de um outro dos meus poetas favoritos, Robert Duncan, que dizia que lutava contra a sintaxe para libertar a Sintaxe (“I struggle against syntax to liberate Syntax”). Essa é também a luta de Álvaro Alves de Faria: ser um ex-poeta, deixar a poesia, para chegar à Poesia, a verdadeira, aquela que, também como o poeta norte-americano acreditava, existe antes da linguagem.

Mas, sendo portuguesa, devo dizer que este é o meu favorito: “Quando/eu crescer/serei/navegador.//É ser/um poeta/do avesso.”

É isto que a grande poesia nos permite: inaugurar novas visões. Depois destes curtos versos, nunca mais pensarei na História portuguesa da mesma maneira. A este poeta brasileiro e português, a este poeta tão universal no seu localismo, só tenho de agradecer pelo muito que a sua poesia me tem dado.

*

(*) Graça Capinha

Universidade de Coimbra

Professora Auxiliar do Departamento de Línguas, Literatura e Culturas –DLLC (Seção de Estudos Anglo-Americanos — SEAA — Faculdade de Letras.

Investigadora do Centro de Estudos Sociais (CES

Co-coordenadora dos Programas de Doutoramento “Discursos: Cultura, História e Sociedade” (FLUC/FEUC/CES) e de Mestrado em Escrita Criativa

Universidade de Coimbra

*

LIVRO-ARBÍTRIO

Álvaro Alves de Faria, São Paulo, Brasil

Onze anos. De 2009 a 2020. Esse foi o tempo de trabalho para escrever este livro de quase 900 páginas. Uma obra realizada paralelamente com outras, que foram publicadas especialmente em Portugal. Nesses 11 anos, segui com meus afazeres literários em vários períodos desse tempo de produção, particularmente de poemas. E sempre surgiam poemas que eu sentia que não pertenciam ao livro que eu estava escrevendo naquele momento. Colocava, então, no arquivo “1.000 Poemas”. E, assim, os anos foram passando, com meu trabalho seguindo normalmente. E, normalmente, também, seguia este projeto dos “1.000 poemas”. Cada vez que surgia um poema fora da linha do que eu escrevia naquele momento — e foram muitos –, ia para a pasta dos “1.000 poemas”, como ficou marcada em mim. Onze anos de trabalho contínuo, porque escrevo muito, certamente o poeta que mais produz da minha Geração 60 de Poetas de São Paulo. E o que mais publica também. E foi assim, até que, repentinamente, surgiu a oportunidade de publicar o livro que se chamaria “1.000 novos poemas”. Fui, então, ao arquivo e me assustei. Ali estavam muito mais de 1.000. Esses 11 anos de trabalho produziram, sem que eu percebesse, mais de 1.400 poemas. A ordem era, então, cortar e escolher os 1.000 que fariam o livro. Não consegui. Senti muita dificuldade em retirar os poemas para chegar ao número certo. Trata-se de algo que não está em mim. Não sou uma pessoa prática. Nem um poeta prático. Diante dessa questão insuperável, as editora Ibis Libris, do Rio De Janeiro, e a Pantemporâneo, de São Paulo, decidiram publicar todos os poemas escritos em todo esse período de 11 anos, todos inéditos. E assim foi feito. Os poemas foram divididos em 15 blocos, cada um identificado por uma palavra. Orgulho-me deste livro. Não sei que caminho vai tomar, mas orgulho-me dele. Não se alinharam em vários momentos de minha produção de poesia, mas eram e são poemas vivos que foram colocados num arquivo até chegar seu tempo. E esse tempo chegou. Publicar poesia no Brasil não é fácil. Imaginem um livro com mais 1.000 poemas. O livro está aqui. Agradeço, sinceramente, a todos os amigos que tornaram esta publicação possível. Sem essa ajuda, este livro que você tem nas mãos não existiria. Agradecimentos especiais para a poeta e editora Thereza Christina Rocque da Motta, da Ibis Libris, e ao artista plástico Valdir Rocha, da editora pessoal Pantemporâneo. Sou poeta a vida inteira. E sei o que significa a poesia na vida do homem e de um povo. A poesia brasileira não vive um bom momento, infelizmente. E já faz tempo. O que existe é uma “poesia” de alguns que se aventuram a seguir um caminho que não conhecem, com publicidade garantida por um jornalismo cultural sem compromisso. Lastimável que seja assim. Por esse motivo, me dediquei por 15 anos à poesia de Portugal, estudando a poesia portuguesa especialmente junto à Universidade de Coimbra e aos amigos poetas que tenho lá e em outras regiões de Portugal, terra de meus pais e de toda minha família. No Brasil — é lamentável dizer — os poetas de verdade que ainda existem se isolam. É uma espécie de exílio do próprio país. Confesso que eu sou um exilado.

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