Poeta
Álvaro
Alves
de Faria

Canal do poeta

A ARMA É A PALAVRA

COMO ARMA
TENHO A PALAVRA
E O PEITO ABERTO

“Como Arma tenho a Palavra e o Peito Aberto” é um livro que discute o papel social da arte, particularmente da poesia que, no Brasil, está relegada a um segundo plano. Aliás, toda a Literatura brasileira, conforme sentenciaram figuras sinistras, que tinham – ao que parece – o objetivo de levar o Brasil para a Idade Média. Esta entrevista-depoimento do poeta Álvaro Alves de Faria, concedida ao poeta português João Rasteiro, para o jornal Sinal Aberto, de Coimbra, leva o leitor a conhecer o que pensa um poeta e também cidadão num país sempre perdido em seus rumos cada vez mais distante dos anseios de um povo. Nesta entrevista-depoimento, Álvaro lembra fatos de sua vida pessoal, sem nunca negar ser um poeta 24 horas por dia, que usa a poesia em tudo que faz. Com um passado marcado no período de força e violência da história recente do país, esse poeta nunca deixou de participar, também como  jornalista, das discussões mais áridas que o Brasil enfrentou nas últimas décadas. E pagou caro por isso. No entanto, nunca recuou. A poesia sempre foi sua maneira de resistir aos tempos mais sinistros dessa história escrita por seus ditadores. A poesia tem um lugar especial neste livro, bem como o desencantamento, a sordidez da política, aqueles que manobram o tempo todo em busca do poder, aqueles que, por esse mesmo poder, traem a própria vida e se apresentam sempre como salvadores da Pátria. Nessa entrevista em Coimbra, o poeta se deixou falar sobre a angústia que faz de sua poesia um documento de um tempo, utilizando seu lirismo contundente, que aprimorou quando decidiu dedicar-se à poesia de Portugal por 15 anos. Filho de pais portugueses, é o único brasileiro da família que vive em Portugal. Mergulhou na poesia portuguesa para enriquecer sua própria obra poética, o que se nota claramente na sua produção poética. Como poeta, nunca esqueceu o homem que batalha todos os dias pela vida, trabalho tantas vezes árduo, mas sempre tendo a poesia ao seu lado e dela recolhendo a postura que tem diante de seus pares. O mesmo pode dizer-se de sua atuação no jornalismo, sempre explorando os assuntos proibidos na época, inclusive no jornalismo cultural e na crítica literária. Este não é um livro de queixas como pode parecer. Pelo contrário, é uma obra de chamamento à luta de sempre, que não termina nunca. O poeta nos mostra com toda clareza de sua palavra, que o que vale, ainda, é a dignidade. Não se pode perder nunca o direito à indignação.

GRANDE VOZ LÍRICA
DA POESIA ATUAL BRASILEIRA

Álvaro Cardoso Gomes

O vous, soyeux témoins qui j’ai fait mon devoir
Comme un parfait chimiste et comme une âme sainte,
Car j’ai de chaque chose extrait la quintessence.
Tu m’as donné ta boue et j’en ai fait de l’or.
Baudelaire, « Ébauche d’un Épilogue »
pour la 2ème Édition de Les Fleurs du Mal

O que dizer a mais do que já se disse deste Como arma tenho a palavra e o peito aberto – entrevista-depoimento do poeta Álvaro Alves de Faria em Portugal ao também poeta João Rasteiro? O que dizer além de que seus poemas viscerais já o disseram, ao longo de uma trajetória de mais de 60 anos, em que o poeta se entregou a um esforço e uma inspiração contínua, para que a palavra não emudecesse ou se transformasse apenas num objeto opaco, no mallarmaico “aboli bibelot d’inanité sonore”, empregado nas convenções do dia a dia?

No entanto, o digo: Álvaro Alves de Faria, uma das grandes vozes líricas da poesia brasileira atual, se
não for a maior, no decorrer dos anos, viveu, como todos nós, de certa forma, também vivemos, num
mundo desconcertado, tomado pelo mais grosseiro materialismo, pela mentira deslavada e traiçoeira, pela transformação dos ideais em matéria putrefata. Devido a isso, criou uma voz própria para se afirmar e se diferenciar da massa alienada, comportando-se como um dos mais autênticos agitadores culturais de nossa época, da nossa cultura. Sua poesia, que busca “viver intensamente o brilho que resta em algumas coisas”, sem fazer concessões de espécie alguma, tenta abrir uma brecha no muro das convenções, investindo, sem panfletarismo, contra as palavras sedentárias, utilizadas apenas como moedas de troca nas relações comerciais. Tais palavras, tendo perdido a força, enquanto
Verbo original, são manifestas, em nosso acanhado meio cultural, as mais das vezes, por meio de uma
literatura acéfala, convencional, visando a cumprir o itinerário daqueles que pertencem a uma autêntica e bisonha confraria do virginal abrigo, onde imperam o compadrismo, o autoelogio e as amizades focadas tão só em perpetuar as legislações caducas, as convenções, o sectarismo, para que se mantenha intacto o status quo. Mas não só o status quo social, com suas vergonhosas diferenças de classe, como também o status quo literário, em que escritores assumem a máscara do cidadão respeitável, dono de verdades incontestes, desligado da realidade por vezes sórdida que o cerca e
protegido dela com a couraça dos fardões, a privilegiar os cordiais encontros regados a chá, enquanto se discute, à sombra dos muros de Constantinopla, o sexo dos anjos. O resultado disso é a produção de uma poesia desfibrada, pronta a expressar as dores românticas e/ou políticas dos corações solitários, sempre à espera, como os alienados de Esperando Godot, das láureas das academias e de um improvável Nobel.

E o que impressiona sobremaneira neste livro-depoimento é o fato de Álvaro não só manifestar o que pensa sobre a poesia ou mesmo para que serve a poesia, sem a praga do didatismo acadêmico. Pelo contrário, utilizando um tom raivoso, anticonvencional, ao assumir o papel de poeta vidente, graças às suas brilhantes iluminações, disseca o nosso tempo de
trevas, dominado por anódinas figuras larvares. Essa persona do poeta inflama de poeticidade seu discurso, como se não houvesse, nele, a aparentemente necessária ou mesmo falaciosa separação entre poesia e prosa, entre as camadas do eu profundo, que “anda a observar as coisas invisíveis que ninguém vê” e o eu-cidadão, exaltado, a cumprir a função de profeta, deslocando-se entre a multidão anônima, tentando seduzi-la com a chama do fogo de Prometeu.

Contudo, não basta ao poeta-profeta se comportar como verdadeiro ladrão de fogo, na medida em que, pronto a oferecer ao Outro a flama do Verbo, percebe que tem diante dos olhos uma realidade que, de maneira gradativa, vem se erodindo, um mundo habitado por autômatos, caminhando sem destino ou cumprindo grotescas tarefas. Entregam-se eles, nas fábricas chaplinianas, com a venda da mais-valia, ao insano trabalho de manipular uma matéria sem consistência, para produzir inúteis constructos, moto-contínuos que, malnascidos, já esperam por sua caducidade precoce. Enquanto isso, fora delas, nos jardins do abandono, brotam as flores e frutos de concreto, parodiando naturezas já de si mortas. Palavras ressoam nas praças com a consistência da lama, imprimindo às coisas um esvaziamento de sentidos e lembrando que, neste mundo imundo, não há mais analogias ou mesmo
correspondências entre tudo o que existe. Nada é similar a nada e tudo é mero simulacro, o que faz que grandes slogans sejam gritados pelos falsos profetas às massas, conduzidas como gado e esmagadas por um tipo de linguagem em que seu significado é apenas a emulação de verdades.

Álvaro Alves de Faria, ainda que enraivecido com esta realidade que se lhe oferece, não lhe dá as
costas, não a nega, muito pelo contrário, a enfrenta de peito aberto e, aos gritos ensandecidos, investe
contra o sem-sentido das coisas. Visa com este seu comportamento extremo, enlouquecido, a tentar tirar as massas do abismo da alienação a que foram condenadas pelos pecados maiores da servidão/submissão aos poderosos de plantão e da entrega ao gozo dos mornos prazeres que a mídia, edulcorando valores, veio, com matreira generosidade, lhes oferecendo, para transformá-las numa mera conjunção de cidadãos desprovidos de alma.

E o eu do poeta onde se situa nisso tudo? Em sua deambulação, na aparência, sem rumo, cabe-lhe
viver o seu tempo, o seu espaço. Servindo-se da matéria, ainda que anódina e putrefata que tem à mão, à semelhança do santo-alquimista baudelairiano, quer recuperar a quintessência de uma linguagem original, a partir de sua subjetividade, que se manifesta de maneira vigorosa, não apenas para despertar lenga-lengas sentimentais ou a comiseração do próximo, mas para afirmar a verdadeira dimensão do humano. De acordo com Adorno, “é a descida profunda ao que é individual que eleva o poema lírico à universalidade, na medida em que traz à luz do dia dimensões ainda
não desfiguradas, não pensadas, não subordinadas a um nível material”. Assim, este sujeito, esta entidade subjetiva que percorre toda a poesia de Álvaro, ora, expressando uma ternura agridoce, ora, implodindo o verbo e, por conseguinte, o real, está à procura de algo oculto atrás das aparências, uma natureza, impedida de se fazer naturante e condenada a produzir tão somente as flores de concreto, os frutos ázimos de um falso paraíso. Essa investidura numa voz própria, que se multiplica em vozes, divulgando sentimentos intensos, implica, segundo Eliot, em seu magnífico ensaio “A função social da poesia”, que o poeta torne “as pessoas mais conscientes daquilo que já sentem e, por conseguinte, ensinando-lhes algo sobre si próprias”. Se não bastasse isso, verifica-se ainda que o ato constante da fala, intimista ou declamatória, a proclamar a existência deste eu sofrido, solitário, tem como sua tarefa direta, tem como compromisso, ainda segundo Eliot, é “com sua língua, primeiro para preservá-la, segundo para distendê-la e aperfeiçoá-la”, diferenciando-a assim dos balbucios incoerentes dos  alienados, dos inocentes de ocasião e das algaravias insanas de Babel, que apenas levam a conflitos sangrentos, onde vítimas são sacrificadas ao apetite dos deuses de fancaria.

“Se o céu e o mar são negros como a tinta,/Nossos corações que tu conheces são cheios de clarões!”
– Baudelaire fechava assim seu poema magistral “Le Voyage”. Algo similar se pode observar na trajetória poética de Álvaro Alves de Faria, nesta sua longa viagem iniciática, sintetizadas em sua entrevista-poema reveladora. A iluminação de nosso mundo soturno de trevas acontece graças ao verbo inflamado, entoado por uma voz que, mesmo trancada em seu desespero e em seu niilismo, faz soar um discurso próprio dos profetas visionários.

Álvaro Cardoso Gomes
Professor Titular de Literatura Portuguesa da USP, Visiting Professor University of California, Berkeley, EUA, Visiting Writer, Middlebury College, VT, EUA.
Romancista (O sonho da terra, Os rios inumeráveis, Panarquia), premiado com o Jabuti (O poeta que fingia e Memórias quase póstumas de Machado de Assis), poeta (Ficções lunares), crítico literário, ensaísta (O Simbolismo: uma revolução poética). alcgomes@uol.com.br

POESIA: “COMO ARMA, TENHO A PALAVRA
E O PEITO ABERTO”

João Rasteiro

Senhora das Misericórdias, / achai o canto
dos cânticos, os salmos, os testamentos,
/ a chaga aberta no peito com a lança de
um crime. / Trazei-me a revolução definitiva,
Senhora. / Deixai-me depois morrer
pelo povo / e guardai-me em vossos braços
todos meus ais, / que seja o sangue dos ferimentos
/ abertos para nunca mais.

Esta entrevista ao poeta Álvaro Alves de Faria é (o) testemunho admirável que valida, na primeira pessoa, a existência, vivência e persistência de um corpo uno e singular entre o orgânico e o poético. Desde as suas primeiras brincadeiras, dificuldades, perplexidades e sonhos no bairro de Brooklin Paulista até a estes primeiros dias de 2023, onde o Brasil e o mundo cada vez mais abraçam e potenciam o espelho da insanidade na beira de um profundo e quase sem retorno abismo,
esta entrevista é o (um) retrato veemente e íntimo de uma das grandes vozes da poesia brasileira atual.

Desde os 11 anos de idade, quando escreve e vê publicado no jornalzinho da Associação de Moradores
de Brooklin, passando pelo primeiro livro “Noturno-Maior”, escrito com 16 anos e publicado aos 21, ou por toda a sua dramática condição de preso político, devido às leituras de “O Sermão do Viaduto”,
quer aos poemas escritos e publicados em 2023, que Álvaro Alves de Faria é alguém em que “a vida e a escrita sempre se fundiram” pois, como refere, “Não sei fazer o que muitos fazem, que separam o homem da obra. Não. Eu não separo”. Daí, o seu destino ser “Meus sapatos / caminham / sobressaltos”. Sempre, sempre, na utopia condenada da poesia!

Árida palavra / na aridez / da palavra árida. //
Árido poema / na aridez / do poema ávido. // A
poesia árida / na aridez / da poesia grávida. //
Árida poesia / na aridez / da palavra grave.

E é precisamente por isso que a voz (poética-social; social-poética, a Voz…) de Álvaro Alves de Faria edificou (e continuamente persiste em edificar) uma obra (sobretudo poética) de alguma forma catártica, mas que, em sua dramática e contundente coragem, é impelida por uma extrema paixão poético-literária e, particularmente, por um profundo sentimento de comprometimento estético e ético.

Ele é homem que sempre foi poeta, mas, em idêntico reflexo do espelho, o poeta que é homem,
que observa e sofre, que padece e escreve. Ele é cidadão-poeta e poeta-cidadão, trilhando o cada vez mais insano caminho, permanentemente em contramão. “E a Poesia? Meus Deus, e a Poesia? Parece até que estamos falando sobre algo que nunca existiu. Mas existiu, sim”. (AAF/SA) Existiu e existe, e embora não salvando o mundo, ela, principalmente para poetas como Álvaro Alves de Faria, é a própria vida. “Escreve-se nela e com ela” o sol, e, por um segundo, com a luz e calor desse sol, o mundo parece-se ouvir e escutar, pois, talvez só “assim a vida se faz escrita e a escrita
se faz vida”.

Para Álvaro Alves de Faria, perante a realidade perfidamente moldada pelo ser humano, quase sempre mais estranha e inverosímil do que a ficção, a poesia, a sua poesia, longe de ser panfletária, não deixa nunca de ser, pelo menos em algumas das suas obras (não só poéticas, mas, ficcionais, dramatúrgicas, pictóricas, etc.) “O uso do punhal”, afiado e contundente, “Em legítima defesa”. A poesia é para si um permanente e aperfeiçoado exercício de resgate da faculdade do questionamento
e da perplexidade, de solidão e inconformismo, de sofrimento e resistência, de quimera e desejo.

Um quase desesperado e incansável, porque absolutamente necessário, testemunho de vida, não
como bem referiu Carlos Felipe Moisés, um testemunho biográfico, mas, aquele testemunho que quase só a poesia, como desde sempre acreditou Álvaro Alves de Faria, pode aspirar: tornar-nos mais humanos. E como ele sabe, ou acredita, que é na ininterrupta escrita (ou reescrita) que a linguagem do mundo, a linguagem poética do mundo se reconstrói e edifica, escreve. Como referiu a professora da Universidade de Coimbra, Graça Capinha, a sua escrita é, pois, um “presente permanente do futuro a construir-se que as palavras têm de acompanhar”.

Há um momento certo / para se escrever um poema.
/ Uma hora certa. / Um dia certo / para se
escrever um poema. / Uma vida inteira.

Em Álvaro Alves de Faria, o obsessivo questionamento ontológico e epistemológico do mundo, no dentro e fora de um “eu” condenado, mas nunca resignado, é o “peito aberto”, onde a palavra é a única arma, mesmo aparentando ser de pólvora seca, que poderá ser útil contra o cada vez
mais maciço corpo de pedra-mundo. Sim, porque, “Ainda existem poetas, felizmente. Poetas que insistem, que resistem. Mesmo morta, a poesia dos poetas verdadeiros, que ainda existem, mostra esse mundo escondido entre as pedras”. (AAF/SA) “O poeta e o cidadão trilham os mesmos caminhos. Sou mesmo um agitador”. (AAF/SA)

Talvez por isso se possa afirmar, sem qualquer hesitação, que a obra poética de Álvaro Alves de Faria
é uma das obras onde o clarão da palavra nos testemunha, de forma plena, que não há respiração poética sem respiração política, tal como não há alento político sem alento poético.

Como referiu o poeta Affonso Romano de Sant’Anna, em Álvaro Alves de Faria, “a vida e a escrita
sempre se fundiram” nele, não é possível, mesmo quando possamos estar mais próximos de um “eu” interior, separar o homem da obra. O homem (cidadão) está espelhado na obra e, de igual modo, a obra está espelhada no homem (cidadão). Corpo a corpo, cicatriz a cicatriz, a palavra única é uma arma de língua viva para resistir, sim, resistir e lutar infindavelmente, mesmo sabendo ele que “a poesia é essa fragilidade literária que se faz necessária, diante da autodestruição do Verbo” (AAF/SA).

Estão comprometidos com o sangue / o verso e o
reverso desta medalha: / desfaz-se em palavras /
o tempo de esperar tempo melhor / faz-se com o
nosso folego e nossa força / não importa morrer
/ veneno que brilha no espaço / importa abrir a
raiz / a dor de uma bala atravessando o cérebro /
sem mais nenhuma palavra a dizer.

Uma poética em corpo contínuo, porque os poemas não mudam, mas, tragicamente, muda, e para pior, o Mundo. Daí, a necessidade e a certeza, em poetas como Álvaro Alves de Faria, de que “os poemas sempre serão uma espécie de depoimento existencial. (…) Os poetas existem para isso, para carregar o Mundo nas costas, para se arrastar junto com as coisas”. (…) O poeta se move e se debate com o seu tempo. No seu tempo. E tenta sobreviver às barbáries todos os dias”. (AAF/SA)

Álvaro Alves de Faria, filho de pais portugueses, poeta que publicou vários livros em Portugal (corpo
geográfico umbilical para ele: Portugal em geral e Coimbra em particular), poeta que mergulhou fundo na tradição lírica portuguesa e que pulsa fundo dentro do seu peito, poeta que já chegou a ser chamado de poeta luso-brasileiro, simplesmente, seja no Brasil, seja em Portugal, seja onde for, é alguém para quem a poesia é a sua forma ( arte e insanidade; desvario e engenho; loucura e dom) de viver. Afirma ele: “Sou militante, sim, e como arma tenho a palavra e o peito aberto. Talvez seja o que ainda me salva”. Talvez seja o que ainda nos ajuda a salvar!

Deixei de falar / e pensar / não penso mais. //
Deixei de escrever / também / deixei de ouvir.
// Para mim / as palavras / morreram / definitivamente.
// No entanto / conservo o olhar / e
permaneço / diante do oceano / a me observar
/ partindo de mim / todos os dias / não sei exatamente
/ para onde. // Sempre que volto / trago
pérolas / que devolvo / imediatamente ao mar.

Curiosamente, ou não, e uma vez que em grande parte da sua obra, se poderá pressentir um aparente desalento e obscurantismo, a verdade é que, numa leitura mais atenta, a esperança é quase sempre um dos vetores fervilhantes dos seus versos. A poesia ergue-se, desaba e reergue-se na firme esperança de que um dia o Mundo há-de mudar. Como ele refere, isso “Não é utopia da poesia. Não. É a palavra da poesia”. (AAF/SA)

“Prefiro a poesia. Um risco, um rabisco. E, depois disso, a eternidade”, afirmou Leonardo Da Vinci. Para Álvaro Alves de Faria, a eternidade é o agora na mais pura teimosia, na mais cristalina repetição, sob um penoso combate condenado no final à derrota. É uma íntima e quase sôfrega míngua obsessiva de voltar cada vez mais a tentar. De voltar a tentar, como Sísifo, sempre na procura
da verdade e do inalcançável absoluto na existência humana, pois só o poema, o verso, a palavra poética poderá ser a própria vida no irrespirável corpo de Mundo. Como diz ele, na obra, “Livro-Arbítrio”: “Faz 50 anos /que faço o mesmo poema / e ainda falta / muito para terminar” – e o futuro, a eternidade, é o agora quase sempre como náufrago no oceano da poesia, mesmo se:

A luz dos olhos é muito pequena / para tão imenso
mundo / que cabe na nossa xícara.

Esta entrevista é somente um pouco mais de clareza, na primeira pessoa, do que é o poeta-cidadão Álvaro Alves de Faria, que ao dedicar-se uma vida inteira (desde os 11 anos de idade) à poesia, de tal forma obsessiva e insana, o seu corpo praticamente se volveu poema. Sempre aproveitando todos os momentos, todo o tempo para fazer a sua poesia, a Poesia, a sua arte de combate e resistência a esta cada vez maior barbárie da linguagem do mundo. Sim, porque “A fera que te fere / não fere teu pensamento. / Fere a fratura exposta, / a ferida do silêncio”.

Como ele refere numa das suas respostas: “que saibamos aproveitar esse tempo que nos falta. E a
arte é esse tempo que nos falta. É lidar com esse tempo tardio. É saber viver intensamente o brilho que resta em algumas coisas. Que brilhe a poesia. Que brilhe todo o tipo de arte. Embora seja tarde demais” – embora seja sempre tarde demais, daí essa desmesurada, tão bela e, simultaneamente, tão trágica militância ou sacerdócio de Álvaro Alves de Faria com a utopia o corpo poético: “Sempre me disseram / que a poesia era sacerdócio / por isso sempre andei / com uma extrema-unção no bolso”.

O eterno perdedor, como são todos os poetas, mas um dos que sempre está na frente de batalha,
pois sempre que se olha no espelho pode afirmar: (re)“conheci um homem livre / mas ele não tinha
mãos. // No entanto, tinha alma / e era um homem livre / com uma estrela no bolso”.

Concluindo, Álvaro Alves de Faria é, não um poeta brasileiro, ou sequer luso-brasileiro, mas, simplesmente, um grande poeta da língua portuguesa. Um poeta-cidadão, ou um cidadão-poeta, combatente e militante, defronte de um mundo praticamente arruinado, ética e esteticamente, onde o poema quase não existe, porque dificilmente subsiste, mas onde é preciso, cada vez mais, insistir, resistir, na certeza de que faz e fez o que lhe “foi possível fazer. Mas falta ainda. Falta dizer
mais” pois que, deste vazio, deste nada, desta escuridão em que se está a cobrir o corpo do mundo, em que o Verbo se está a tornar, é que ainda poderemos renascer: pelo menos, assim crê o poeta de “Livro-Arbítrio”.

Citando Graça Capinha, no prefácio de “Livro-Arbítrio”, o tal livro de uma vida de Álvaro Alves de Faria, “É isto que a grande poesia nos permite: inaugurar novas visões. (…) A este poeta brasileiro e
português, a este poeta tão universal no seu localismo, só tenho de agradecer pelo muito que a sua poesia me tem dado”.

Agradecer o que a sua amizade e generosidade me tem ofertado, agradecer por ser Poeta e continuar
até ao último sopro antes da derrota anunciada a proclamar, “como um sacerdote / numa igreja / porque para Deus / os livros de poesia são sagrados”, a proclamar com uma lâmina na mão esquerda e um cálice na mão direita: “como arma tenho a palavra e o peito aberto”.

E, sim, Álvaro, tu és a prova absoluta de que “a poesia é sempre o início de tudo”. Sim:

Senhora das Alucinações, / salvai-me da hecatombe
final. / Senhora das Angústias, / livrai-me deste
tempo de punhais, / guardai-me em vosso manto /
onde possa falar comigo mesmo / sobre desistir de
vez destas ruas / fechadas com arames farpados. /
Senhora dos Homens Solitários, / dai-me as mãos
e não deixeis / que me arranquem as plantas do
jardim / onde estão os pássaros derradeiros.

João Rasteiro (Ameal, Coimbra, 1965). É poeta e ensaísta, licenciado em Estudos Portugueses e Lusófonos (Universidade de Coimbra), integra atualmente a Direção do P.E.N. Clube Português. Integra os Conselhos Editorial das Revistas DEVIR – Revista Ibero-americana de Cultura, Oficina de Poesia e Folhas – Letras & Outros ofícios. Recebeu, em junho de 2023, o Prémio Literário Natália Correia atribuído ex aequo a Sardoal, de João Rasteiro, e Egoscopia ou a Mecânica Geral de Si Mesmo, de Leonel Barbosa, na categoria de poesia, dado pela primeira vez a duas obras na terceira
edição do concurso.

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