Poeta
Álvaro
Alves
de Faria

Canal do poeta

Alma Gentil – Raízes 3

O lançamento

Fotos de Carmén Barreto

Poeta com Constantino

Poeta com Nello Rodolfo

Mariana, Fernanda e poeta

com Maria Alice

com Isabel Cintra Nepomunceno

Ana Carolina, Júnior, Maria Paula e Gabriela

com Nicodemos Pessoa

Mariana Riscala, poeta e Felipe Curi

Helder, Gabriel, poeta e Guilherme

com Juliana Gennari

José Anito

José Armando Pereira da Silva

com Paula Valéria

Daysi de Fátima, Amanda de Fátima e Maria Antonia

Doutor Waldemar e doutora Lygia Kogos

com Celso de Alencar

Eltânia André, Ronaldo Cagiano e poeta

com Carmén Barreto, jornalista assessora de imprensa da Escrituras

TRAVESSIAS

MIGUEL SANCHES NETO

Os poemas que Álvaro Alves de Faria colige sob o título geral de Alma Gentil-Raízes iniciam-se com um verso que, pela posição de portal, adquire um valor extremamente simbólico nesta sua poesia de retorno a Portugal: “Atravesso a ponte de Santa Clara” – escreve o poeta. De fato, estes seus livros vão operar uma travessia, vencendo as distâncias que separam o Brasil de Portugal, distâncias físicas e culturais. O poeta paulista, uma de nossas vozes mais destacadas, deixa sua cidade natal, a modernista São Paulo, e faz o caminho de volta a uma latitude ancestral – as terras e os verbos lusitanos aos quais se liga não apenas pelo sangue (seus pais vieram de lá) mas também pela sensibilidade.

O poeta, na madureza, sente a poesia ressecar em torno de si, devido ao papel irrelevante da palavra poética na cultura brasileira e à estratégia de afirmação dos não-poetas entre nós. Quando nada mais pode entusiasmá-lo no seu país, depois de décadas de uma produção conjugada na cidade dos homens, Álvaro Alves de Faria começa a fazer uma longa viagem de volta. Ele vai afirmar, ao homenagear a poeta Sophia de Mello Breyner Andersen (O Livro de Sophia, 2008), o sentido maior deste deslocamento:

 

Estou na tua terra, Sophia, em busca desse poema que me falta,

No teu país em que me percorro em minha intimidade

Como se assim pudesse ainda salvar minha alma de poeta que fui.

 

Esta travessia tem, portanto, um sentido salvífico. Ao fazê-la, Álvaro Alves de Faria, que vem se declarando um ex-poeta por não pactuar com o que se entende por poesia no Brasil contemporâneo, tenta retomar uma identidade perdida. Para que o poeta que ele foi possa ainda existir é preciso um ambiente cultural que o reconheça neste papel. Assim, este voltar-se para Portugal é antes de mais nada uma imposição interior. O ex-poeta quer encontrar uma tradição poética na qual ele caiba para que possa novamente ousar ver-se como bardo. Portugal é assim a pátria de um verbo lírico inexistente entre nós; e a travessia, um movimento vital.

Esta viagem é antes de mais nada uma oportunidade de o poeta continuar unido a seu pai, fazendo da ausência no agora uma presença num passado comum que só é conquistado com este deslocamento no espaço e no tempo, afirmação do poder de permanência pela palavra nestas coordenadas poéticas. Ao andar pelas ruas de Coimbra, o poeta vence lapsos temporais, conquistando um convívio impossível em outra circunstância – em 20 poemas quase líricos e algumas canções para Coimbra, 1999:

 

Atravesso alta noite

A caminhar ao lado de meu pai

Que morreu há tanto tempo.

 

Os passos do filho, assim, ecoam os do pai, numa união que dá ao mais jovem outra nacionalidade. Álvaro viaja para reconhecer lugares carregados de memória, fazendo-se descender desta pátria que, sendo outra, é mais sua do que o Brasil, por conta de sua condição profunda de espaço de memória familiar: “habito Coimbra / como se mergulhasse na minha reminiscência” – cantará no oitavo poema do livro acima citado. É nesta cidade/nação que o poeta acha a sua alma, explicitando o título feliz desta coletânea: Alma Gentil-Raízes diálogo com Camões e tradução fiel deste encontro com a alma que não respeita distâncias que separam os corpos. Por meio de suas viagens, o poeta herda a alma lusitana, fazendo dela uma autodescoberta, pois Portugal e ele são um só país: “Caminho por estas ruas de Coimbra / como se dentro de mim caminhasse”.

Em todos os seis livros que compõem este volume, há sempre uma obsessão pelos sapatos, que são antigos, infinitos, quietos, sem rumo, estão sujos de distâncias ou de ausências. Os sapatos são as chaves analíticas destes poemas. O poeta se move, faz a viagem de filho pródigo, retorna à casa. A poesia é, para ele, movimento, é uma força ao mesmo tempo centrífuga (deixa o Brasil) e centrípeta (volta a Portugal). Esta metáfora dos sapatos aponta para o espaço-tempo vencido, mas dá também suas marcas estilísticas.

Seus poemas são jornadas por lugares, pessoas, poetas e mitos literários. A sua é uma poesia para ser lida em voz alta, para ser percorrida como se percorre uma cidade, com olhos de ver, entregues aos acontecimentos da rua, à paisagem. Raramente assume uma forma parada, é sempre movimento, entrega peripatética ao outro, diário de bordo de uma viagem que nunca termina. Lemos os poemas como se andássemos por uma cidade mais da memória do que da geografia, por isso eles exigem uma cadência de passos livres, de falta de rumo, de aceitação do acaso. Andar a cidade dos antepassados e dos poetas é perder-se na poesia imemorial.

Este verbo andante lhe devolve como paisagem e como recordação mais do que um país, toda uma tradição, na qual Álvaro Alves de Faria se insere, misturando sua voz à voz dos grandes poetas portugueses. Ele não lê Camões e os demais poetas líricos, ele se torna parte deles – e eis aí mais uma possível explicação para o título deste volume. Em um dos poemas de A memória do pai (2006), ele vai dizer: “Os poetas portugueses falam em mim”; a recíproca sendo também verdadeira.

Já em Poemas portugueses (2002), ele retoma a ideia da sobreposição tempo e espaço – começando o livro com uma declaração forte: “São antigas as ruas da memória”. Portugal, uma vez mais, é um espaço da travessia maior rumo a um passado pessoal ou, como o poeta dirá, à “geografia da minha intimidade”. Em “Alma”, ele revela a sua identidade mais profunda: “Minha alma se deixou em Portugal / onde viveu meu pai”. Ele não segue à outra pátria em busca do diferente, mas daquilo que lhe pertence e que lhe falta.

Sete anos de pastor (2005) o coloca agora num lugar sagrado, continuação da identidade de filho pródigo, que volta à casa paterna não para mandar mas para servir. Ele é o servo pela palavra, que se torna um guardião dos mitos poéticos, da linguagem lírica, da língua, das paisagens vistas. Embora ainda tenhamos a força metafórica dos sapatos, prepondera a idéia do músico. O poeta se faz flautista e canta a pátria que o recebeu de volta. Os poemas aqui, ao contrário dos outros livros, e dos que virão, ganham um sentido mais individual, uma independência do conjunto. Talvez sejam, por isso, o centro desta Alma gentil.

Os poemas “Servo” e “6 atos” reforçam a identidade do poeta como súdito, que serve o verso de um reino meio místico, onde ainda é possível o ofício sacro da poesia. Se Álvaro foi em busca da poesia que lhe faltava, ele a encontra em muito destes poemas, belos e concisos. Já não é mais um andar pela cidade, mas uma música conquistada. E Portugal aqui não é visto como exterioridade, como imagens, mas como algo que reside “na pele de minha roupa / costurada debaixo de mim”. O ritmo que tinha a solidez das pedras e das ruas ganha agora o fluir das águas e da música.

Nesta trajetória circular, o vínculo com o pai o leva a Portugal e Portugal devolve o pai ao poeta, dando-se pela palavra a superação da orfandade. Pai e país se fundem. E chegamos ao mais comovido poema do conjunto – A memória do pai. Um pai que não retorna para acompanhar o filho, pois pai e filho se encontram numa condição póstuma, já pertencem ao sem-tempo.

 

Meu pai
nunca soube
que eu morri.

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