Em Contramão
O livro de poemas de Álvaro Alves de Faria e desenhos do artista plástico português Rui Cavaleiro, “Em Contramão”, publicado pela Editora Palimage, de Coimbra, foi lançado online, a partir de Coimbra. Participaram escritores e poetas de São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza, Manaus, Curitiba, Brasília, Coimbra, Lisboa, Salamanca, Barcelona e Nápoles. Nesta página tudo sobre o livro escrito e desenhado sem que os dois autores se conhecessem pessoalmente. O trabalho entre Álvaro e Rui durou dois anos através das redes sociais.
APRESENTAÇÃO DE VICTOR OLIVEIRA MATEUS
Escritor português
Álvaro Alves de Faria, neste seu livro intitulado Em Contramão (Palimage, 2020) mantém-se fiel a uma dualidade fundamental que tem sido a pedra de toque da sua produção poética: a) a procura de uma expressividade que traduza, o mais fielmente possível, dadas vivências individuais (“Queria saber lidar com a vida,/ mas isso não é para iniciantes”, 27:6-7, neste meu texto, o primeiro número dirá sempre respeito à página e os números seguintes aos versos; “Não me adivinho/nem sei quem sou/ no instante em que me revelo”, 45:4-6)) e igualmente certas interpretações de cariz universalizante, sejam estas de tipo antropológico (“Antigo é o suor do homem(…) Frágil é o homem/ que carrega a própria alma/ sem nunca saber”, 17:6-11); metapoético (“Canto a poesia ainda possível/ neste vale de lágrimas,/ esta poesia que fere,/ que corta. 51:1-4); social (“O que sei é que tenho vontade de explodir coisas, especialmente prédios oficiais/ onde eles se reúnem todas as tardes” 65:2-4; “Farei um favor à humanidade: explodirei o mundo amanhã/ ao entardecer, para ser mais romântico”, 71:1-3), etc. Esta procura é feita pelo poeta através, não de uma linearidade discursiva eventualmente redutora da complexidade, mas antes recorrendo a procedimentos vários de desconstrução da linguagem; b) a fuga a qualquer tentativa de etiquetagem de estarmos perante uma poética de livro único; Alves de Faria, sem fugir à coerência interna da sua já longa produção poética, desmultiplica-a em obras, que, apesar de se tangenciarem aqui e ali, enformam um somatório de livros autónomos e perfeitamente individuados – breve exemplo: em Desviver (Escrituras, 2015) a tese central encontra-se subordinada a uma forte formalização do sentido, onde as contradições e os paradoxos se regem por um trabalhar da linguagem onde pontificam anáforas, aliterações e assonâncias; em elegias da mão esquerda (Palimage, 2017) o sentido distende-se dando azo a longos poemas monostróficos em verso livre; em A duas vozes (Palimage, 2018) surge uma obra de cariz dialogal, onde o poeta brasileiro vai trocando instantes, visões e interpretações com a poetisa portuguesa Leocádia Regalo. Por tudo isto, percebe-se a persistência e a maestria com que Álvaro Alves de Faria tem sabido edificar uma obra sólida e consistente.
Neste seu livro Em Contramão, o poeta recorre, ao nível da explanação do sentido, ao entrecruzamento de paradoxos (“Cada um à sua maneira tenta viver/ o que já é o bastante/diante do nada que há.”, 41:13-15; “O coração está morto/mas ainda pulsa/ ainda pulsa/ o coração que está morto.” 99:20-23); contradições (“que seja assim este andar sempre por lugar nenhum”, 31:9; “Canto essa poesia ainda possível/essa que sangra sempre”, 51:15-16); oxímoros (“lúcida loucura” 77: 15) e repetições de palavras e expressões (Cf. pp 101, 103, 123). O cismar do eu poético, complexo, desalentado, ora perscrutador ora assertivo, seria intraduzível por uma qualquer linearidade discursiva, daí Alves de Faria enveredar por um procedimento, que, qual enorme caleidoscópio verbal e de imagens, nos desvela e reforça o sentido que pretende fazer passar. Este tipo de ancoragem do discurso poético, remete-nos para a tese de John E. Jackson relativamente à poesia de Paul Celan, que, segundo este especialista da poesia moderna, se serve de um assumido caráter paradoxal, para assim poder falar dos vários tipos de experiência vivida nas nossas sociedades. Jackson exemplifica com versos que Celan recolhe de Verlaine e de François Villon, que depois de os modificar lhes imprime os paradoxos pretendidos, e o ensaísta conclui: “Um tipo de discurso no qual o Não não está separado do Sim é, em certo sentido, paradoxal (…) tal superação do princípio de identidade parece em todo o caso uma das caraterísticas de Niemandsrose. (…) O efeito radica aqui na causalidade paradoxal que identifica a curva (Krumm) e o direito (gerade). Também aqui, como no caso das rosas (num outro poema), poderemos concluir que o paradoxo é solúvel” (In La poésieetsonautre. Paris: José Corti, 1998, pp 83-84). Ora, Alves de Faria, segue uma estratégia formalmente semelhante: colocado num hoje marcado pela hecatombe e por escombros, ameaçado pela desesperança e pela consciência da ruína e do desencontro (“Perdido entre as nações que vivem dentro de mim,/ mas sou estrangeiro em todas elas”, 31:1-2; “seguindo um destino/ que termina em nada,/vais ao encontro de teu abismo/ e não sabes voar”, 73:5-8), por conseguinte, e ao nível das dimensões da temporalidade, o poeta vive um presente ameaçado pelo desastre – rondando a filosofia de Cioran! – lembra um passado, louvável mas irremediavelmente perdido, e, de tudo isto, infere um futuro antecipadamente condenado. Contudo, é através da memória (“Alguma memória nasce/– alguma memória sempre nasce –/neste tempo de barbárie,/ como um milagre qualquer,/ desses que acontecem nas igrejas(…)/ sempre nasce uma memória/ (…) para o agora”, 79:1-10), da ousadia (“Eis meu D. Quixote/ a atravessar os desertos das almas/como se fosse salvar o mundo”, 23:1-3) e da imaginação (“Sempre haverá um sol em alguma janela/ assim tão amarelo/ que o próprio amarelo não conhece. 29:1-3), que o poeta, como já assinalámos, supera os paradoxos, deixando uma ténue frincha aberta ao (ainda) possível e é assim também que ele escapa, neste livro, a um solipsismo desistente e absoluto, bem como a um ceticismo radical. Álvaro Alves de Faria consegue deste modo que um quotidiano e uma interioridade poética complexos e plurifacetados passem de uma perceção individual a uma universalidade em que o leitor atento se reconhecerá, ou seja, a sua poética não se fecha numa mera prestidigitação lamentosa, individualizada e hermética, antes é a objetivação, a universalização, de um estar-aqui em que todo o leitor atento se reconhecerá, e essa é a marca de água da verdadeira poesia lírica (Cf. Theodor W, Adorno. Poesia Lírica e Sociedade. Coimbra: Angelus Novus, 2003, pp 13-29), é através dela que Álvaro Alves de Faria, mesmo vindo Em Contramão, acaba por se encontrar com todos nós mediante a sua acuidade e o seu brilhantismo poético. Paralelamente a tudo o que foi dito relativamente ao poeta brasileiro Álvaro Alves de Faria, urge realçar o papel determinante que o artista plástico português Rui Cavaleiro desempenhou na concretização deste projeto que viria a desembocar na consecução do livro Em Contramão, aliás, os desenhos são mesmo, neste livro, a mola impulsionadora dos poemas. Estamos habituados a ver o desenho funcionar como ilustração da palavra escrita, ora aqui sucede exatamente o inverso: o encontro, numa Rede Social – o Twitter –, entre poeta e artista gráfico viria a originar um diálogo artístico que se prolongaria por mais de dois anos: os desenhos postados inicialmente por Rui Cavaleiro na dita Rede eram, num segundo momento, enviados a Alves de Faria, que assim o solicitava e sobre eles escreveria um poema. Deste profícuo encontro e, diremos mesmo, desta convergência no olhar o mundo e no interpretá-lo, sem que cada um perdesse a sua especificidade, resultaram 55 desenhos e 55 poemas, que formam o livro de que temos vindo a falar. Sem pretender elaborar uma hermenêutica do trabalho de Rui Cavaleiro nesta obra, convém, no entanto, enfatizar algumas variáveis de suma importância e que, não por acaso, estão em consonância com a parte poemática da obra. Assim, neste trabalho gráfico podemos encontrar: a ironia (p 16), essa ironia surge por vezes eivada de algum desalento (pp 52, 56), em outras de uma certa acidez (pp 54, 64); o humor (p 28); a crítica social e política (p 114), mas também o comprometimento com momentos e causas (p 120); o vivencial, que no trabalho de Rui Cavaleiro, aparece recorrentemente marcado por uma enorme solidão das figuras retratadas (pp 24, 44, 46, 48, 52, 74), o que faz aparecer como corolário certos desenhos nomeadamente o da página 70, como se aí se acenasse a tese, ilustrada igualmente pelo poeta, de que de um mundo de escombros e de ganância, para usar aqui a expressão de Peter Singer, só pode derivar esse par antinómico que é, por um lado, o desespero, mas por outro, a indignação, a revolta e a vontade de superação deste imprestável aqui-hoje. Creio ser exatamente nestes territórios que desenhos e poemas iniciaram o seu diálogo e, consequentemente, acabaram por se encontrar.
Ainda relativamente ao trabalho gráfico é importante assinalar, que, nas suas opções estilísticas, o desenhador/pintor recusa correntes estéticas como o Abstracionismo, o Hiper-Realismo e o Simbolismo, para assumir, muitas vezes de forma veemente, um certo Realismo de cariz social, contudo, convém afastá-lo dos primeiros momentos da pintura neorrealista, embora seja possível traçar convergências entre alguns desenhos de Rui Cavaleiro e as fases ulteriores de pintores neorrealistas como por exemplo Rogério Ribeiro (Cf. quadros Pateo, Dor ); existe também, na minha opinião, alguns desenhos que fazem lembrar os grandes quadros do Fauvismo (Cf. Quai des Grands Augustins e Saint-Michel et le Quai des Grands Augustins , ambos de Albert Marquet ) e em outros Rui Cavaleiro usa com tenacidade e maestria técnicas de colagem e de sobreposição de materiais. Importa, no entanto, deixar vincado que este espraiamento gráfico, não deriva de um qualquer sincretismo tateante, mas antes da consciencialização de que perante uma realidade múltipla, complexa e desdobrável importa recorrer a formas igualmente múltiplas de a entender e captar essa mesma realidade, e, neste sentido, podemos concluir então que a opção estética de Rui Cavaleiro foi feliz e eficaz.
VICTOR OLIVEIRA MATEUS, POETA, PROFESSOR UNIVERSITÁRIO, LISBOA
POEMAS E DESENHOS
5.
Eis meu D.Quixote
a atravessar os desertos das almas
como se fosse salvar o mundo.
Eis meu Cervantes
nesta paisagem em ruínas
a cavalgar palavras
que se perderam.
Eis meu D.Quixote
ferido de si mesmo
pelos moinhos
que cortam a vida em pedaços.
Eis meu Triste Cavaleiro
que não sabe o que fazer.
8.
Sempre haverá um sol em alguma janela
assim tão amarelo
que o próprio amarelo não conhece.
Um sol na pele e na água,
a mulher que se estende num espanto
e se deixa correr por rios intermináveis.
Sempre haverá esse sol por dentro das coisas,
nas celas, nas igrejas, nas ruas,
nos castelos e nas cabeças que já morreram.
Sempre haverá um sol.
Sempre.
11.
Minhas palavras inúteis
procuram a poesia
como se mergulhassem dentro de mim
para me descobrir escondido do mundo
e das ausências que me habitam.
Trago palavras que não compreendo,
as mesmas que morreram dentro dos livros
com seus poetas sem destino,
aqueles que vagavam ruas nas paredes
e se deixavam ficar livres de si.
Minhas palavras inúteis
formam o vocabulário
que a boca se nega dizer.
13.
Não sei qual a face da mulher:
faz noite e tudo é frio
e chegas assim com tuas cores
e teus perfumes
teus olhos enormes
o azul da tua pele que me cobre
o vermelho de teu corpo
esse destino que desconheço
não sei a face da mulher
essa que me entristece:
faz noite, Florbela, e tudo é frio
tão longa é minha prece.
15.
O pensamento se perde nas casas de minha cabeça,
como sombras antigas de janelas partidas
que insistem viver na reminiscência,
no que se deixou na memória.
Desabam em mim as casas que desapareceram
e pensar não é o bastante
porque a vida já não basta.
Cai-me na cara os cortes de ferros e lâminas
que me fazem sorrir,
porque a loucura ri de tudo
abrindo mais as feridas de um tempo
que se esconde por dentro
num tempo sem saída.
16.
Observo o tempo parado,
como um tiro
ou um terço para rezar.
Não me adivinho
nem sei quem sou
no instante em que me revelo.
Tenho lágrimas de vidro
que cortam a face em pedaços.
Está tudo apagado
e a solidão é sólida como uma pedra.
Deixem-me ficar.
Os passos morreram
e não há para onde ir.
17.
Nada tenho a dizer senão o silêncio
e a ausência do que sou,
este vazio de tudo que se estende
e percorre as ruas e minhas roupas
molhadas de meu corpo.
Nada tenho a dizer
porque as palavras faltam,
mortas num poema que se perdeu.
Nada tenho a dizer,
senão as sombras que me cercam
e me habitam,
como se fossem a alma
que desapareceu
num Café em Coimbra
em que tomei meu veneno final
25.
O tempo que passa num caderno
se estende ao que se vive sem querer,
porque a vida não reserva nada
talvez seja necessário destruir tudo,
sem pensar em nada,
sem mergulhar a cabeça no balde de angústia
nem reinventar a respiração.
Não sei quem sou
ao destruir os retratos
e as fotografias antepassadas
que estão grudadas em mim.
Sou um ser da imaginação
que deseja incendiar o que resta,
pouco a pouco,
pouco a pouco,
pouco a pouco,
até ficar o papel em branco
e eu destruído inteiramente pelo fogo
27.
Penso no meu corpo ferido,
mas o tempo passa por cima,
deixa somente marcas
e a vida passou sem que eu percebesse.
Sem que eu visse
a vida passou.
Sem que eu sentisse.
Quando dei por mim,
nada de mim restava,
senão os pedaços que eu tinha,
minha pele magra,
minhas mãos machucadas
e mais nada a viver.
Sem que eu sentisse,
a vida passou.
31.
Te desnudo, diva,
com minha alma ferida,
à procura de minha vida
no teu corpo que me chama.
Quero morrer em ti
para salvar-me de mim.
Te vejo no meu espanto,
não sei se o amor existe
como dizem os poetas suicidas.
Quero então matar-me
dentro de ti,
como o barco que naufraga
para nunca mais.
Te aguardo
e terei comigo os entanderceres
que me ensinaste a inventar
nas horas incertas
quando tudo chega ao fim.
36.
Não me interessa o mundo
ou o que trazes em tua bolsa,
as facas com que me cortaste as mãos
e arrancaste meus dedos dos pés.
Fecho os olhos porque
nada existe que queira ver,
senão talvez uma pequena lua
manchada de sangue,
desse que se derrama
nas revoluções em nome do povo
que não sabe que é povo
e certamente nunca será um povo.
Quero apagar-me
com o vermelho das cores
que me abatem e me ferem.
Quero apenas esquecer.
43.
Não me atinge esse tiro o coração,
mas o coração está morto.
O coração está morto
o coração está morto
o coração está morto
o coração está morto
risco vermelho na camisa de Maiacovsky
essa bala que penetra
mas o coração está morto
o coração está morto
não me atinge o coração esse tiro
no coração
não me atinge
e nunca me atingirá
porque haverá o grito atrás dos prédios
das ambulâncias
automóveis
pessoas tristes
mulheres feridas
o coração está morto
mais ainda pulsa
ainda pulsa
o coração que está morto.
49.
Assim que atravessas a rua
com meu amor incerto na bolsa,
como se eu fosse viver outra vez,
mas esqueci como se faz.
Guardo entardeceres
para que chegues
sem que eu perceba.
É preciso sentir no ar
e nas folhas das árvores.
Tenho em mim
tudo que foi esquecido
num tempo de desalento.
Assim que atravessas a rua,
como se respirasses por minha alma
e calasses em ti todas as palavras.
Esse é o poema que nasce
e a poesia é tão pouca.
Resta tirar-te
o ar que ainda respiras
51.
Para os que acreditam ainda,
o mundo está nas minhas mãos,
faço e desfaço porque mando
e quem manda faz e desfaz.
Tua vida me pertence
e dela também farei o que bem quiser,
já que não tens mais rumos
e os rumos que conseguires
tirarei de ti
para mostrar teu caminho
de nunca teres nada.
Resta-te implorar-me
o ar que ainda respiras
e não sei se te darei,
porque tua vida me pertence.
Manda o mais forte,
essa é a lei,
o resto é o que resta de ti,
és o vassalo do rei
e o rei sou eu,
por mais
que não queiras compreender.
54.
Resta sempre a voz do povo,
embora a mordaça faça sangue no canto da boca,
no lábio arrancado, os olhos fechados na dor.
Resta sempre a voz do povo
e esse cravo vermelho que marca a vida
e os passos a seguir
com o gosto de liberdade na garganta.
Resta e restará sempre a voz do povo,
esse povo que sempre observa de longe,
à margem de si mesmo,
como se nada fosse.
Mas o povo é o povo que um dia acorda
e sai às ruas para dizer as palavras necessárias,
a poesia de tudo esmagada nas paredes.
Sempre será a voz do povo a resistir
e gritar nas ruas esse voo
para redescobrir
o que se tem a viver.
MESTRE RABISCADOR, RUI CAVALEIRO, DE PORTUGAL
Rui Cavaleiro é um artista visual que nasceu em Lisboa em 1955. Estudou no Liceu Camões e licenciou-se no Instituto Superior de Agronomia. Durante trinta e dois anos viveu em Bruxelas e trabalhou para uma conhecida organização internacional. Dedicou-se a temas diversos ligados à agricultura e à alimentação, desde produtos geneticamente modificados às vacas loucas. Depois, já no novo século, reconverteu-se e trabalhou, sempre para a mesma organização, em comunicação política.
Durante os anos de Bruxelas e paralelamente ao seu trabalho de burocrata, frequentou diversas academias de arte, tendo-se exercitado nas disciplinas de desenho e de pintura. Na Academia de Arte de Woluwe Saint Pierre, foi aluno de Saskia Weyts (Pintura) e Alain Goffin (Banda Desenhada), durante os anos noventa.
No ano de 2016 lançou-se no mundo editorial e publicou um livro de textos e ilustrações intitulado “Bonecos e Reverências”, Esfera do Caos Editores.
Em 2017 e 2018 frequentou a Academia de Arte de Ettebeek, tendo sido aluno de Thierry Goffart, na disciplina de desenho e de Carine de Brabanter, na disciplina de banda desenhada.
Em Junho de 2019 realizou uma exposição de desenhos aguarelados e uma instalação vídeo, na Biblioteca da Câmara Municipal de Cascais. O título da exposição foi “Taras e Tarots”.
Esta exposição foi posteriormente levada ao Porto, Centro Comercial Dolce Vita, em Dezembro 2019.
Reformou-se de funcionário em 2019, deixou Bruxelas e dedicou-se com paixão às artes visuais a tempo inteiro. Eterno aprendiz, frequenta atualmente a Esfera d’Art, em Sant Cugat del Vallès, onde aprende pintura com Martin Carral e Carmen Anzano.
O seu trabalho está presente nas redes sociais, onde adotou de bom grado a alcunha de “Mestre Rabiscador”, com a qual foi batizado pelos seus seguidores.
Partilha o seu espaço e o seu tempo entre a sua cidade natal, Lisboa, e Sant Cugat del Vallès , na Catalunha.
JORNALISMO DE INTERESSE PÚBLICO
Quero Ser um Poeta Português!
Por GRAÇA CAPINHA – UNIVERSIDADE DE COIMBRA
Álvaro Alves de Faria
Acaba de sair em Portugal, pela mão da editora Palimage, de Coimbra, o último livro do poeta Álvaro Alves de Faria, Em Contramão, em colaboração com o artista plástico Rui Cavaleiro.
Hesitei se devia escrever o poeta luso-brasileiro, o poeta brasileiro ou o poeta português. Acabei por deixar poeta e artista plástico sem identidade nacional definida. Se é certo que Rui Cavaleiro se define como português, apesar dos muitos anos a viver em Bruxelas e Barcelona, a verdade é que, apesar de nunca ter vivido fora do Brasil, o poeta Álvaro Alves de Faria vem repetindo, ao longo dos mais de vinte anos em que nos conhecemos: “Quero ser um poeta português! Vocês têm de me deixar ser um poeta português!”
Além de várias colaborações em antologias, a verdade é que o poeta já leva dezoito livros publicados em Portugal, distribuídos por quatro pequenas editoras: A Mar Arte, Alma Azul, Palimage e Temas Originais. E, contudo, apesar da sua extensa obra em Portugal e no Brasil (aqui, com mais de sessenta obras, que incluem poesia, romance, ensaio literário, livros de entrevistas e peças de teatro), apesar de vários livros em tradução em Espanha e em Itália (além de poemas publicados em revistas e antologias, também em francês, inglês, japonês, servo-croata e húngaro), apesar de dois prémios Jabuti pelo seu trabalho a favor do livro, um Prémio Anchieta de Teatro e, mais recentemente, os Prémios Poesia e Liberdade Alceu Amoroso Lima (Rio de Janeiro, 2018) e Poesia Guilherme de Almeida (S. Paulo, 2019) pelo conjunto da sua obra, este poeta — que quer ser um poeta português — permanece quase completamente desconhecido entre nós.
Conheci-o em 1997, na sede da Rádio Jovem Pan, em plena Avenida Paulista, onde trabalhava como jornalista cultural e onde tínhamos marcado encontro para uma entrevista. O contacto chegara-me por meio de um outro jornalista, que, quando lhe falei do projecto de investigação sobre a poesia da emigração portuguesa no Brasil que eu então desenvolvia, me disse de imediato: “Você não pode ir embora sem conhecer ‘o Poeta’”! E lá me explicou que Álvaro Alves de Faria era assim mesmo denominado no meio jornalístico de S. Paulo.
Saía no avião do início da noite, mas lá fui a correr fazer aquela que seria a minha última entrevista em S. Paulo. E foi uma desilusão! Filho de pais portugueses, ‘o Poeta’ parecia não ter qualquer interesse por Portugal, nem qualquer relação com a cultura ou “a colónia” (a comunidade portuguesa, como alguns e algumas saberão, é assim identificada no Brasil) portuguesas.
Chegada a Portugal, li O Sermão do Viaduto, longo poema que o fizera famoso na Geração de 60 da poesia brasileira, e que lhe valera a censura e cinco detenções num Brasil em plena ditadura, pois, estando a obra proibida, optara pela sua repetida leitura através de altifalantes em recitais públicos no conhecido Viaduto do Chá, em S. Paulo. No ano seguinte, quando organizámos o 3º Encontro Internacional de Poetas da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (encontros que, ao longo de quase vinte anos, trouxeram a Portugal mais de trezentos poetas de todo o mundo, entre os anos 1992 e 2010), resolvi incluí-lo na lista de nomes de poetas brasileiros a convidar. E foi aí que tudo começou.
O impacto da cidade de Coimbra, na sua arquitectura, nas suas ruas, na sua cultura, ainda que apenas só apreendida, foi de tal ordem que Álvaro Alves de Faria escreve, de um fôlego e ao longo da sua primeira noite em Portugal, os poemas que haveriam de se constituir como o seu primeiro livro português, 20 Poemas Quase Líricos e Algumas Canções para Coimbra. Nesse livro se confronta com o que costumo chamar “a memória da memória”, a memória das palavras e das vivências dos seus pais, tal como as tinha guardado da sua infância e da sua juventude.
Todos os livros que se seguiram são uma forma de lidar com essa sua identidade portuguesa, agora penosamente redescoberta, porque se constitui em face da ausência, da perda e da morte. São livros em que, num diálogo sobremaneira complexo e profícuo com toda a história e toda a grande tradição literária portuguesas (de Camões, Sá de Miranda, Pessoa, Sophia de Mello Breyner, etc.), o poeta tenta lidar com a violência de uma linguagem em que se descobre outro, sem chão no seu excesso de chão, habitante de uma espécie de desterritório, sempre em processo de reterritorialização.
É essa perturbação interidentitária, sem fim à vista, que dá forma a uma poesia marcada pela negatividade estrutural, pelo jogo com os sons (na paronomásia ou no polypdoton, por exemplo), pela ironia distanciada, por vezes até por uma nota de humor, mas sempre num pendor meditativo.
Deixo apenas um exemplo de Em Contramão: “Nada tenho a dizer senão o silêncio/e a ausência do que sou,/este vazio de tudo que se estende/e percorre as ruas e minhas roupas/molhadas de meu corpo.//Nada tenho a dizer/porque as palavras faltam,/mortas num poema que se perdeu.// Nada tenho a dizer,/senão as sombras que me cercam/e me habitam,/ como se fossem a alma/que desapareceu/num Café de Coimbra/em que tomei meu veneno final” (47).
O prefaciador, Victor Oliveira Mateus, na sessão de lançamento online realizada no passado dia 6 de Novembro, falou de como encontrava algo de Paul Celan nesta escrita — e estou tentada a concordar com ele, mesmo que a dimensão traumática seja aqui de uma outra ordem.
E falou também de expressionismo, sobretudo no que diz respeito à dimensão visual da obra, nomeadamente nos desenhos de Rui Cavaleiro, com o que não posso estar mais de acordo, não só pela autonomia da cor (e do som, no caso da poesia), mas sobretudo pela recuperação do feio para a arte: de tudo aquilo que vai além de um pensamento abissal e que se confronta com a dimensão dionisíaca da nossa existência, daquela que passa pelo confronto com o caos, a fragmentação e o estilhaçamento, do mundo e de si — pois é disso que se trata em Em Contramão.
O encontro entre o poeta e o artista plástico aconteceu através das redes sociais e da sua correspondência saíram estes poemas a partir das imagens partilhadas. Afinal, também há coisas boas a acontecer nas redes sociais.
Rui Cavaleiro
Era bom que elas também conseguissem trazer para o centro do nosso campo literário e artístico alguns destes autores que tanto nos representam. E talvez assim se fizesse de Álvaro Alves de Faria o poeta português que ele já é.
Graça Capinha (Americanista, professora da FLUC e investigadora do CES, trabalha sobre poesia e poética contemporâneas. Coordenou, durante 17 anos, a revista e o curso livre de escrita criativa “Oficina de Poesia”)
PALAVRAS DO EDITOR DA PALIMAGE JORGE FRAGOSO
Caro Álvaro
Estou contente com o lançamento de ontem.
Acho que foi uma boa sessão. Muito agradável. Correu muito bem.
O Rui já me escreveu dizendo que recebeu mensagem de satisfação dos amigos dele.
Também a Stefania gostou muito e já pediu a gravação.
Agradeço a você a sua ajuda na gestão da reunião e dos oradores.
E as suas intervenções, para além da bela leitura que fez, foram, ao mesmo tempo, objectivas e, também, emocionais as suas saudações a todos os amigos. Apreciei muito e agradeço-lhe por isso.
A gravação da reunião: vou editar o vídeo e compô-lo para depois o enviar a quem o pedir. É um ficheiro grande que não sei se poderei colocar no facebook. Mas vou tentar. Depois, envio-o para si, para você o partilhar com os seus amigos brasileiros (que tanto apreciam você. Gostei de ver e ouvir as considerações de todos os amigos e amigas quem tanto apreciam a sua poesia e a sua vida de poeta).
A Gisele perguntou se poderia ter o livro em PDF.
Você quer enviar para ela, ou prefere que eu envie?
Caro Amigo, estou mesmo feliz por tudo ter corrido tão bem.
Um grande abraço.
JF
PALAVRAS DA POETA ZULEIKA DOS REIS, SP
Terminei de ver o vídeo há cerca de meia hora. Foi muito emocionante ver e ouvir a fala dos poetas e artistas que tanto amas e que tanto te amam, te amam tanto quanto a tua obra, em amor que uma coisa só. Foi bom rever o Valdir Rocha, o Celso de Alencar, a Fernanda de Almeida Prado (…) ouvir as leituras dos teus poemas feitas por eles e pelos mais. Foi bom ver e ouvir Graça Capinha, as poetas com quem você fez livros entrelaçando a poesia feminina e masculina… e todos os mais participantes. Gostaria de ter estado lá ‘diretamente’: foi uma pena eu não ter conseguido, mas, valeu tanto quanto ter podido assistir ao vídeo.
Foi muito bom ter visto, ainda que rapidamente, a Amanda e o Alvinho.
Formato complicado esse, de lançamento on-line. Ainda assim, apesar de um imprevisto aqui e ali, principalmente no inicio, tudo correu bem. O lado bom desse formato: fica-se centrado no essencial, não há dispersões indesejadas e inoportunas como sói acontecer as vezes nos lançamentos presenciais.
Tudo muito serio e tudo muito bom. O amor e o respeito que todos têm por ti e por tua obra, algo profundamente tocante.
Guardo, por muito forte, o trecho em que Victor Oliveira Mateus fala de “uma certa dimensão salvifica do passado” na poesia de “Em Contramão”; a fala que afirma “recusa Álvaro um solipsismo absoluto”, em suma falas que ressaltam a dimensão solidaria, universalizante e paradoxalmente esperançosa da tua poesia.
Obrigada, caro, por me ter enviado o vídeo. Fiquei feliz.
Beijo, Zuleika.
"Voa o menino..." do livro EM CONTRAMÃO de Álvaro Alves de Faria e ilustrações de Rui Cavaleiro
Lançamento online do livro Em Contramão de Álvaro Alves de Faria
A contracorriente. Alves de Faria siempre en dirección contraria: Un libro de Palimage para la Lusofonía, con dibujos de Rui Cavaleiro
Portada del libro publicado por Palimage, en Coimbra
El pasado viernes participé en la presentación online del último poemario “EM CONTRAMÃO”, obra del destacado poeta brasileño Álvaro Alves de Faria, de quien mucho y bien he escrito y traducido. No me extrañó el título, pues Faria siempre a ido a contracorriente, siempre ha encaminado sus pasos en dirección contraria a las monsergas oficiales y a los versos pueriles de muchos que se sienten ‘famosos’.
Para ser exactos, este nuevo libro lleva su firma como poeta, pero también la del otro autor del mismo, Rui Cavaleiro, quien aporta los dibujos y collages que dieron lugar a los escritos de Faria: él vio alguno de ellos en Internet, le gustaron y así se fue estrechando una relación entre poeta y artista, que recién ahora se han conocido y hablado, durante la sesión virtual de presentación, la cual tuvo su eje central en las reflexiones de mi querido amigo Victor Oliveira Mateus, poeta, traductor, filósofo , antólogo y director de revistas literarias y de pensamiento. Excelente, como siempre, la intervención de Victor.
Quien dirigía todo, desde Coimbra, fue el entrañable poeta Jorge Fragoso, editor de Palimage, bajo cuyo sello editorial salió el libro de Alves y Cavaleiro. Mientras Jorge hablaba, recordé que fue él quien en 2006 me pidió que tradujera a un buen poeta brasileño. Le pedí la obra, para ver si me interesaba, y claro, así fue como comenzó mi indeleble relación con este “Ex” llamado Álvaro Alves de Faria.
Los poetas Alves de Faria, Alencart, SatokoTamura, Cyro de Mattos y Jorge Fragoso, en Salamanca (foto de Jacqueline Alencar, 2013)
Entre el nutrido grupo de amigos y admiradores que seguían la presentación, fue grato ver y saludar a Leocádia Regalo, tan respetada por mí, bien como ensayista y como poeta. Y también recibir los saludos de Graça Capinha, profesora de la Universidad de Coimbra, o de Gisele Wolkoff, poeta paranaense ahora residiendo en Tokio. Y claro, a Stefania Di Leo, quien se sumó desde Italia, o Montserrat Villar…
Anote algunos nombres de quienes asistían a la amplia presentación, donde muchos leyeron un poema de Faria que les gustaba, o hicieron comentarios en torno a los mismos y a los dibujos de Cavaleiro. Entre otros, estos son los que recuerdo o bien me informa Jorge Fragoso: Adélia Silva, Maria Alves, Fernando Marinho, Paulo Ferreira, Paulo Borges Santos, Ricardo Serra, Josep Lluis Ribò, Miguel B. Pedro, António J. Costa, Maria João Lima, Rosa Barros, Luce Kérien, Aurélio Crespo, Carlos Azevedo, Dalila Veras Teles, Celso de Alencar, Valdir Rocha, Thereza Christina Rocque da Motta, Beth Brait, Fernanda de Almeida Prado, Isabel Cintra Nepomuceno, Raimundo Gadelha, Carlos M. Lima Azevedo, Mattia Faustini, Leila Ramacciotti o Gustavo Pimenta.
Faria, Pinto, Alencart, Fernández Labrador y Oliveira, en la Sala de la Palabra del Teatro Liceo de Salamanca (Foto de Jacqueline Alencar)
Por mi parte, hice una breve intervención hablando sobre un dibujo de Rui Cavaleiro inspirado en la famosa foto de Robert Capa, esa titulada “La muerte de un miliciano”. También comenté algo sobre la portada del libro, donde la hiena parece acosar al lobo (Homo Homini Lupus), y alguna cosilla más, como leer un poema de Faria, traducido al castellano.
Aquí lo dejo conocer, junto a otros cuatro más, todos inéditos en nuestros idioma.
1.
La vida no tiene por qué ser diferente
de pronto todo explota
y la vida sube a los aires
como un pájaro de alas rotas
un amor de fuego prometido
esa sonrisa mentirosa en la cara
todo va a los aires
así como debe ser
un instante y todo pasa.
Álvaro Alves de Faria leyendo en el Teatro Liceo (2014. foto de José Amador Martín)
5.
Es mi D. Quijote
atravesando los desiertos de las almas
como si fuese a salvar al mundo.
Es mi Cervantes
en este paisaje de ruinas
cabalgando palabras
que se perderán.
Es mi D. Quijote
herido de sí mismo
por los molinos
que cortan la vida en pedazos.
Es mi Triste Caballero
que no sabe qué hacer.
El artista portugués Rui Cavaleiro, autor de los dibujos y collages del libro
46.
No es el Paraíso
pero te entrego lo que quieras de mí,
la planta más extraña,
el fruto de mi sabor,
te doy lo que no tienes
y que tendrás cuando lo desees,
pero no es el Paraíso
que me cubre la piel
que me hace respirar
y palpitar el corazón.
No es el Paraíso
pero aquí estoy presente
para vivir,
para sentir
y para comprender
las raíces de la tierra
las que viven como los temporales
que ya no logro contener.
El alcalde de Salamanca, Julián Lanzarote, declara Huésped Distinguido a Álvaro Alves de Faria (2007, foto de J. Alencar)
47.
Me miro por dentro
pero el futuro está lejano,
me miro por mirarme
para alejarme de mí,
para que no me vea en ningún espejo,
me miro
por mirarme,
para verme mejor,
para sentir mejor lo que queda,
lo que me falta,
lo que desaparece
y que no vuelve más,
lo que se calló para siempre
y todo eso está en lo que miro
al mirarme por dentro,
una casa en ruinas,
todos los amores destrozados,
todos los silencios vivos
en la ausencia de mí mismo.
Autorretrato de Rui Cavaleiro
55.
Está muerta la naturaleza muerta
está muerta
la naturaleza está muerta
como están los músculos
del brazo izquierdo
como están los ojos cerrados
y los días que dejaron de nacer.
Están muertos sobre la mesa
en la naturaleza muerta
muerta naturaleza su vida posible
en lo que da en ese rastro
de tantos cortes
ese cuchillo que corta
está muerta la naturaleza
como muerta está la poesía
como muerto está el poema
como muerto está el poeta
como muerto está el hombre.
Naturaleza muerta que explica todo
sin palabras ni comillas
naturaleza muerta
en la memoria de la nada,
error de ser.
Leocádia Regalo, Álvaro Alves de Faria, A. P. Alencart y Jacqueline Alencar, en el Colegio Fonseca de la Universidad de Salamanca