Entrevista: Álvaro Alves de Faria a caminho de Portugal - Parte 2 de 3
Floriano Martins
Quanto a dizer que as tradições se mantêm alheias concordo, mas não sei se com tanta extensão assim. Há muitos poetas brasileiros publicados lá, como você mencionou. Mas a recíproca não chega a ser verdadeira em relação a poetas portugueses aqui. O que se tem aqui de poesia portuguesa é muito pouco. Vejo com entusiasmo a iniciativa da Escrituras em publicar aqui os poetas de lá. E que ocorra o mesmo quanto à Quasi, que tem dado grande contribuição nisso que estamos falando. Ou nisso que estamos a falar. Mas é preciso dizer à Quasi que no Brasil não existe apenas Manoel de Barros. Seja como for, qualquer coisa que se faça nessa área tem de ser aplaudida. Eu espero mais de Portugal em relação ao Brasil do que do Brasil em relação a Portugal. Aqui reina a vulgaridade, infelizmente. E nem todos são vulgares.
FM – Na resposta anterior mencionaste alguns poetas brasileiros que consideras de boa linha, digamos, e de distintas gerações. Poderias fazer o mesmo em relação à poesia portuguesa?
AAF – Mencionei alguns nomes que me vieram à cabeça. Claro que há outros. Muitos outros. Felizmente há. A poesia brasileira é rica, quando escrita por gente séria. Em relação à poesia portuguesa cito também os nomes que me vêm à cabeça neste instante, como Antero, como Eugênio de Andrade, Mário Cesariny, Herberto Helder, Al Berto, Mário de Sá-Carneiro, Sofia de Mello Breyner Andresen, Albano Martins, Régio, Florbela, José Gomes Ferreira, Antonio Nobre, Cesário, Nuno Júdice, Helder Macedo, Gomes Leal e muitos, muitos outros. Repito, muito outros. E muitos outros também em relação à poesia do Brasil. Não quero que fique a impressão de que nada presta. Não é isso. Eu me refiro ao que ocorre agora neste país de tantas angústias, de tantas mentiras. E num país onde quase só existe mentira, a literatura não deixaria de ser atingida.
FM – Minha preocupação era outra, ou seja, a de provocar uma correlação entre as duas tradições, sondar, por exemplo, de que maneira poetas como Manuel Gusmão, Luís Miguel Nava, Rosa Alice Branco, poderiam corresponder a vozes contemporâneas da poesia brasileira etc. Quais seriam aqueles poetas que consideras mais substanciosos atualmente em Portugal e que espécie seria possível observar entre eles e alguns brasileiros?
AAF – Você cita especialmente três poetas que não mencionei, Manuel Gusmão, Luis Miguel Nava e Rosa Alice Branco. Gusmão é considerado um dos mais importantes poetas de Portugal, além de ensaísta que escreve sobre Poesia. Você sabe disso melhor do que eu. Ele que diz ser preciso sentir a dor muito profundamente para se conhecer o significado da alegria. Acho que essas palavras me cabem. Já Luis Miguel Nava me é especial, principalmente por ter levado a vida às últimas consequências, até terminar assassinado em Bruxelas, em 1995. Sua poesia me toca profundamente, por essa paixão que consome, que arrasta, que talvez enlouqueça. Aqui lembro de meu amigo Roberto Piva. Talvez seja ele um dos maiores, certamente o maior poeta de Portugal dos anos 80. Ele que queria ser entendido somente por aqueles “de quem o coração for de roldana/ do poço que lhes desce na memória”. Creio que também a mim cabem esses versos. A mim tudo cabe. Me cabem todos os versos escritos em Portugal. Quanto a Rosa Maria Branco, ela lançou aqui no Brasil, em São Paulo, pela Escrituras, uma seleção de poemas, Soletrar o dia, obra prefaciada por você. O livro tem uma declaração: “Nossos agradecimentos especiais a Floriano Martins, por seu grande empenho em estreitar os laços culturais entre Brasil e Portugal”. Assim, estou falando com a pessoa certa. Não cheguei a conhecer Rosa Alice Branco pessoalmente, embora tenha vindo lançar seu livro aqui em São Paulo. Falamos por telefone. Fiz com ela uma entrevista. Ela diz num poema o que também me serve: “Parece simples/ a simplicidade que vem das coisas/ e nos encontra o meio do caminho”. Mas além dos três nomes que você mencionou, poderia citar também Maria Tereza Horta (“O oceano/ por entre o oceano”), David Mourão Ferreira, Luíza Neto Jorge, Ruy Belo, Antonio Ramos Rosa, Vasco Graça Moura, Ana Marques Gastão, Egito Gonçalves. Poderia citar outros, como citaria outros brasileiros. Mas não os 175 milhões de poetas do país. Sua pergunta, no entanto, nada tem a ver com isto que estou dizendo. Acho mesmo que nada tem a ver com nada. Você pergunta a que vozes brasileiras corresponderiam os três poeta que você citou. Não sei bem como lhe responder. A poesia ocorre. Toda a poesia, seja ela de onde for, sempre terá uma correspondência. A poesia tem seus entrelaçamentos. Toda a poesia, desde que seja ligada à vida do homem, da mulher, das crianças, dos bichos, das plantas, das pedras, do desespero, do grito. Toda poesia ligada à vida. Isso eu encontro muito em Portugal, uma poesia que não se envergonha de ser humana. Você também me pergunta que poeta considero mais substancioso em Portugal. Respondo que hoje é Eugênio de Andrade. Seria, ao meu ver, uma espécie de Carlos Drummond de Andrade, de João Cabral de Melo Neto, de Bandeira, de Ferreira Gullar, por sua importância na poesia portuguesa. A figura de Eugênio de Andrade é uma figura de poeta. Se é que isso exista. Eu o conheci no Porto a dizer poemas no Teatro do Campo Alegre. Impressionou-me sua voz, seu andar. O olhar. As palavras de uma poesia que merece o respeito de todos. Lá está um poeta. Um homem poeta: “Trabalho com a frágil e amarga/ matéria do ar/ e sei uma canção para enganar a morte/ e assim errando vou a caminho do mar”. Levou-me às lágrimas. Por que não dizer? Um poeta inteiro, acima de qualquer suspeita. Troquei com ele algumas palavras, mais até para ouvi-lo de perto. Fazia muito tempo que eu não via um poeta, embora, naquela oportunidade eu estivesse ao lado de Ferreira Gullar. Fazia muito tempo que eu não via um poeta com o absoluto significado da poesia. Um poeta de Portugal, feito de poemas que não sei dizer, porque apenas sinto e com esses poemas de Eugênio consigo imaginar que existe poesia no mundo, até mesmo em meu país de valores invertidos, de tantas mentiras em tudo.
FM – Alguns traços comuns no que diz respeito à tua geração?
AAF – Minha geração talvez não exista. É preciso dizer, no entanto, que não sou uma sumidade em conhecimento da poesia portuguesa. Publico lá um livro a cada ano e meio. Apenas isso. Sou conhecido lá por 19 pessoas, incluindo meus familiares. Nada além disso. Mas isso me basta. Por exemplo, neste exato instante eu me pergunto: Nesta porra do país onde estará Bruno Tolentino que, com Roberto Piva, forma o que de melhor produziram os anos 60 na poesia do Brasil. Os melhores de minha geração feita de tantas vaidades. O que existe de fato nessa geração são pessoas lembradas por atitudes, não por poemas. Quem publicará Bruno Tolentino, Astrid Cabral, Adriano Espínola neste país de facínoras? Em certos casos, aqui, basta ser medíocre. Não precisa mais. É necessário dizer sempre que existem as exceções. É preciso dizer também que em Portugal sou publicado por duas editoras pequeníssimas, a Alma Azul, de Coimbra, e agora a Palimage (A imagem e a Palavra) de Viseu. Nada além disso. Sou apenas um aprendiz em Portugal. Vou lá colher a poesia que alguém já disse ser necessária. Pensando em Portugal a Poesia chega a ser novamente um prazer. Em relação a este livro Sete anos de Pastor, mergulhei em Camões. Fui buscar em Camões o que me falta. Me dá prazer, por exemplo, escrever poemas assim:
Do pedido póstumo pudera em pedra partir
para os pátios perdidos nas preces das palavras
a paz que se padece à parte do passo que pára
o punhal que pungente pune o pranto.
Quer dizer: busco em Portugal o prazer de escrever o poema que não consigo mais aqui. Sei que a poesia é uma coisa pessoal, quando escrita. Eu poderia escrever dentro de mim sem me deixar envolver por tudo isto que estou dizendo nesta entrevista. Mas, às vezes, não é possível. Portugal é uma porta. Uma paisagem existencial. Uma paisagem poética. Nessa paisagem me deixo estar. Como já disse, para me salvar. Sinto prazer, para citar mais um exemplo, de começar um soneto assim:
Se partistes de vós assim sozinha
sem que eu pudesse em mim mudar a sina
deixai então viver na morte minha
a dor que em mim começa e em vós termina.
FM – O que te leva a Portugal?
AAF – Tenho ido em busca de mim, se é possível entender. Em busca da minha poesia ainda possível. Talvez em busca da vida que me resta. É preciso dizer que sou filho de pais portugueses. Minha mãe, Lucília, de Anadia, meu pai, Álvaro, de Angola. Dei razão à escritora Graça Capinha, da Universidade de Coimbra, quando escreveu sobre os poemas dedicados a Coimbra. Ela disse tratar-se de um mergulho na memória da memória. É assim mesmo. Me vejo procurar por dentro. Me vejo diante de mim, a olhar-me na possibilidade do olhar ainda possível. Busco minha própria reminiscência. Busco em Portugal a poesia que não encontro mais aqui, sempre ressaltando as exceções que existem. Nem todos são levianos. Até na minha geração há pessoas sérias, poetas que entendem esse ofício de escrever poesia. E eu digo “até” porque nesta minha geração – que às vezes escrevo com G maiúsculo – muita gente produz muito discurso e pouca poesia. O que vale mesmo é a chamada política literária. Essa coisa sórdida que não leva a lugar nenhum. Não gosto nem sou de políticas sórdidas. Essa coisa menor de muitos conchavos e acenos gratuitos.
Se você me permitir, volto a utilizar um trecho do poema “Decisão”, deste Sete Anos de Pastor. Acredito que explique melhor:
Deixei de falar
e pensar
não penso mais.
Deixei de escrever
também
deixei de ouvir.
Para mim
as palavras
morreram
definitivamente.
No entanto
conservo o olhar
e permaneço
diante do oceano
a me observar
partindo de mim
todos os dias
não sei exatamente
para onde.
Sempre que volto
trago pérolas
que devolvo
imediatamente ao mar.
Então voltando à sua pergunta sobre o que estou indo eu fazer em Portugal, volto a responder que tenho ido em busca de me tentar salvar. Isso vale para a poesia e para muitas outras coisas que certamente não cabem numa entrevista sobre literatura. Tenho ido em busca de mim. Vou buscar-me onde me deixei. Vou em busca do ar para respirar. A Portugal me apresento como poeta brasileiro. Se é que sou de fato poeta brasileiro. Sinceramente, tenho alguma dúvida. Apresento-me a Portugal como sou. Um poeta à procura da poesia. De Portugal pretendo apenas a poesia. Pretendo vestir-me de poesia. De Portugal pretendo-me apenas ser. Quem sabe renascer?
FM – E como é que tua poesia é recebida em Portugal?
AAF – Há críticas generosas a meu respeito. A bem da verdade, não saio por lá distribuindo livros para a imprensa. Sou bastante tímido para fazer isso. Não faço, não faria lá. Mas já fui entrevistado em Portugal algumas vezes para falar de minha poesia e de poesia brasileira. Minha maior aproximação é com a Oficina de Poesia dirigida por Graça Capinha, com poetas da Universidade de Coimbra. Lá, sim, falo sobre poesia em geral, e particularmente discuto minha própria produção. Sinto nessa Oficina em Coimbra um grande interesse por tudo. Há um detalhe que me chama atenção, que se refere, no que me diz respeito, a certa elaboração do poema que me parece não existir em Portugal. Aquela elaboração lidando com as palavras e tirando da palavra todos os sentidos que elas podem oferecer. Por exemplo: Estive na Oficina de Poesia em 2002, quando levei alguns exemplares de meu livro A Palavra Áspera, publicado pela Íbis Libris, no Rio de Janeiro. Os universitários poetas se debruçaram em poemas, fazendo anotações, discutindo sua construção. Poemas como este que tem o título “Poesia”:
Árida palavra
na aridez
da palavra árida.
Árido poema
na aridez
do poema ávido.
A poesia árida
na aridez
da poesia grávida.
Árida poesia
na aridez
da palavra grave.
Esse pequeno poema andou de mão em mão. Soube depois que foi discutido exaustivamente, especialmente no que se refere ao uso da palavra dentro do poema que afinal fala da própria poesia.
Outro exemplo do que chamou muita atenção foi um pequeníssimo poema feito com apenas quatro palavras, chamado “Destino”.