Entrevista: Álvaro Alves de Faria a caminho de Portugal - Parte 3 de 3
Floriano Martins
Meus sapatos
caminham
sobressaltos.
Neste Sete Anos de Pastor tenho outro pequeno poema na parte “Descobrimentos” que segue essa mesma linha que tanto chama a atenção, pelo menos no que diz respeito a Coimbra, entre os poetas que conheço. Acredito que seja ainda uma parte a explorar na poesia portuguesa. Chama-se “Poente”:
O sol morre
e faz
a noite
ser.
Há também os poemas que se constroem especialmente com o som das palavras, sem esquecer o próprio poema. Isso eu senti de maneira intensa na leitura que fiz em 1998 no Terceiro Encontro Internacional de Poetas, apresentando um poema chamado “Eldorado dos Carajás”, que não faz parte de nenhum livro meu, mas está em algumas publicações portuguesas. O início do poema é assim:
A foice fere a faca
corta a faca corta a face
e tece
a terra
ferida fenda infinita
a foice cala fundo
a selva a planta
a foice finca
finais finados
a febre a fibra
a foice afunda o fogo
a terra
o homem ferido
a semente
o semeio
a foice força
arranca o fim da fúria
a terra sepulcro
a bala a faca o sangue
a boca a sede a ruga
a fala
a falha o filho a folha
a foice
pálida morte.
FM – Além da obra de criação, tens uma expressiva contribuição à cultura brasileira através da atividade jornalística e da organização de algumas antologias e livros com entrevistas. O que planejas agora para Portugal? Buscarás um desdobramento deste mesmo ambiente, de realização de entrevistas, antologias, ou acaso tens alguma outra coisa em mente?
AAF – Não planejo nada em Portugal com respeito ao trabalho que faço aqui. Você diz que minha contribuição no Jornalismo foi expressiva. Agradeço. Mas isso é verdade. Passei a vida inteira escrevendo sobre livros e escritores e poetas brasileiros. A vida inteira. Como jornalista dei espaço para todo mundo. Até para os concretistas que não podem ouvir meu nome. Mas a recíproca é absolutamente verdadeira. Até eles tiveram no suplemento cultural Jornal de Domingo, que eu criei no Diário de S. Paulo, o espaço que desejaram. Nunca fechei a porta para ninguém. Nunca fui filho-da-puta com ninguém. Talvez seja por esse motivo que por duas vezes recebi o Prêmio Jabuti como crítico literário. Não sei, no entanto, o que isso me significa hoje. Meu livro Trajetória Poética – Poesia reunida, recebeu o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte como o melhor livro de poesia de 2003. E daí? Penei para publicá-lo. Penei muito. E consegui graças ao patrocínio de amigos. Eu tenho a impressão de viver num país de loucos, onde minha própria loucura não cabe mais. Quanto à organização de antologias, que você lembra, troquei um livro meu, pessoal, em favor de uma antologia de poesia contemporânea brasileira em Portugal. Só arrumei desafetos. Organizei com o Carlos Felipe Moisés a antologia da tal geração 60 de poetas de São Paulo. Mais desafetos. Então o que é que afinal vale a pena? Absolutamente nada, quando se vive entre feras. De forma que não tenho plano qualquer em relação a Portugal, senão cativar ainda mais meus 19 leitores e alguns amigos para conversar sobre coisas banais. Como estamos conversando agora. É preciso se aproximar dos bons poetas e fugir dos que fazem da poesia uma afirmação pessoal da mediocridade, amplamente amparada pelos suplementos culturais deste país. Não dá mais, meu amigo Floriano Martins, para conviver com tudo isso. Tantos poetas com livros da melhor poesia suplicam, por exemplo, uma pequena nota nesses suplementos. Nada conseguem. Mas os facínoras conseguem com facilidade. Faz alguns anos, um dos facínoras projetou umas letrinhas coloridas na parede de um prédio aqui em São Paulo, dizendo tratar-se de poesia. A Folha de S. Paulo publicou até foto colorida na primeira página. Isso me envergonha. Não dá para conviver com isso. É muita mentira. É fascismo puro. E isso ocorre também na universidade. Que país é este em que tentamos viver?
FM – Defendes então que a saída seja mesmo o aeroporto?
AAF – Em relação à Poesia acredito não existir outra alternativa. Pelo menos para mim. É quase deixar tudo de lado. Partir para outra. Diante do que me aflige, fui buscar na poesia de Portugal, especialmente em Camões, a saída que se faz necessária. Vejo em Camões essa Poesia feita como Poesia. A minha fonte secou por estas plagas tropicais, neste país de tanta violência. Não quero ter dupla nacionalidade na Poesia. Quero apenas ser poeta. Livre até mesmo de mim. Mas principalmente livre desse escárnio em que se transformou a poesia brasileira, aviltada sempre, manipulada de maneira vergonhosa por alguns indivíduos que não têm noção do que estão fazendo. Mas o que mais dói é a irresponsabilidade dessa chamada mídia cultural, esse comportamento inconsequente, louvando grupinhos que não sabem absolutamente nada de nada. E isso ocorre também com a prosa. Basta ver o que tem saído por aí. E tudo com espaço garantido nos tais suplementos. Tudo acertado. Este é mesmo o país do conchavo descarado. A saída é mesmo o aeroporto. Como se dizia no tempo da ditadura, o último apague a luz. Mas de lá para cá as coisas não mudaram muito. Os tais suplementos, com as raras exceções de sempre, trabalham ainda com o AI-5 debaixo do braço. Certa vez o poeta Ferreira Gullar reclamou comigo a falta de poemas nos suplementos culturais brasileiros que ainda existem. Gullar falou também das distorções que se cometem nessas publicações. Disse-me, então, que muitos suplementos são editados sem consciência do que se está fazendo. Ferreira Gullar me disse estar cansado, por exemplo, de ler textos sobre Baudelaire escritos por pessoas que nunca leram um único verso de Baudelaire. Falou-me que essa leviandade e essa ignorância são uma das marcas da época em que vivemos. Como não concordar com o poeta? Mas eu não acredito que seja somente leviandade e ignorância. Não. Há também o componente da má fé. O componente da mentira.
FM – Esta mentalidade tacanha, mesquinha, virulenta, não é um traço recente da casta intelectual brasileira, embora tenha piorado a olhos nus. De onde vem este caipirismo, que não deixa de ser reflexo de um complexo do colonizado, e como acreditas que este quadro possa vir a se reverter?
AAF – A casta intelectual brasileira é mesquinha. É também ridícula. É preciso fugir dessa gente. Muitos agora no poder vivem das traições de todos os dias. Tudo em nome do poder. Isso é outra decepção que se fez em grande amargura. Por vinte anos ouvi um discurso, ajudei nesse discurso, acreditei nesse discurso. Mas agora vejo que não era bem assim. O que vale é trair os próprios ideais, se é que um dia de fato existiram. Não tenho simpatia por Stálin. Tenho medo de Stálin. Tenho medo da mentira. A mentira é uma das coisas que mais me ferem como ser humano. Este é o país em que tudo apodrece, a poesia, as pessoas, a literatura, a política, a palavra, o jornalismo, a universidade. Quando eu acreditava na vida, foi preso cinco vezes pelo Dops por falar poemas no Viaduto do Chá. Eu pensava que ia salvar o mundo falando poesia para as pessoas. Eu acreditava nisso. Com 20 anos a gente acredita em tudo. Mas depois vem a vida. Ela se mostra e mostra também uma face amarga. Uma faca amarga. Mostra a boca amarga. Mas depois vem o depois e outro depois. E de depois em depois a gente caminha, fazendo o possível para se equilibrar sempre na corda bamba, dentro do grande espetáculo brasileiro. E o espetáculo brasileiro continua com seus personagens. Não há como reverter isso. A casta é forte. Seja como for, é preciso caminhar. Mesmo sem poesia é preciso caminhar.
FM – Além deste Sete Anos de Pastor – que tem na capa a figura do Pastor dos Autos de Gil Vicente – o que já tens em Portugal?
AAF – A Editora Alma Azul, de Coimbra, publicou dois livros meus, que são 20 poemas quase líricos e algumas canções para Coimbra (1999), prefaciado pela minha querida Graça Capinha, que sempre apresenta meus livros lá, e Poemas Portugueses (2002), com prefácio de meu amigo querido Carlos Felipe Moisés. Essa mesma editora publicou uma antologia que organizei chamada Brasil 2000 – Antologia de Poesia Brasileira Contemporânea. Participo em Portugal de alguns livros de poesia, como Literatura Portuguesa e Brasileira (Porto, 2000), organização de João Almino e Arnaldo Saraiva; Nove Poetas Brasileiros (Coimbra, 2000), organização de Elsa Ligeiro; Antologia de Poetas Brasileiros (Lisboa, 2000), organização de Mariazinha Congílio; Poesia Mundo/3 (Porto, 2001), organização de Maria Irene Ramalho de Souza Santos; Antologia de Poetas Paulistas (Lisboa, 2001),organização de Mariazinha Congílio; Poetas revisitam Pessoa (Lisboa, 2003), organização de João Alves das Neves; Revista Oficina de Poesia (Coimbra, 2004), organização de Graça Capinha. Também participei de alguns eventos culturais em Portugal, dos quais destaco o Terceiro Encontro Internacional de Poetas, promovido pelo Grupo de Estudos Anglo-Americanos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em 1998, e do Congresso Portugal-Brasil 2000 – Literatura Portuguesa e Brasileira, na Universidade do Porto, em 2000, nas comemorações dos 500 Anos do Descobrimento.
FM – Querido poeta, deixo aqui a tribuna livre para o que mais queiras comentar, desde já desejando a tua felicidade plena nesta nova etapa de tua vida.
AAF – Meu caro Floriano Martins, poeta amigo que aprendi a admirar e que descobri há tão pouco tempo. E tudo, meu amigo, é tão pouco tempo. Gostaria muito que os poetas brasileiros fossem como você é. Gostaria que tivessem sua generosidade, tivessem eles as palavras que encontrei nos seus livros. Tivessem eles essa Poesia que é a sua Poesia. E vendo esses seus poemas é que, no fim de tudo, posso descobrir que nem tudo está perdido. Desculpe-me por estas palavras a seu respeito, que sei não desejar na entrevista que está fazendo comigo. Mas este espaço me pertence e dele quero fazer uso para uma coisa boa, como é preciso ser em todas as coisas. De forma que esta tribuna livre que você me oferece no final desta entrevista seja, sim, uma palavra de enaltecimento à Poesia que, apesar de tudo, ainda se produz neste país. Que seja a poesia brasileira como é a sua, meu amigo, que siga esse caminho, essas ruas árduas da existência, que se faça e se elabore em nome da beleza, em nome da palavra, em nome da possível alegria de viver, que a poesia merece, sempre haverá de merecer.