RAÍZES:
DO SER-PARA-A-MORTE AO SER-FEITO-DE-TEMPO
Nelly Novaes Coelho
Poeta maior, presença marcante entre as vozes da “Geração 60” brasileira (a do “novo épico”, que surge nos rastros do Existencialismo), Álvaro Alves de Faria, no limiar deste século XXI e em plena maturidade poética/existencial, assume-se como poeta de Portugal. Em Inês, um de seus “livros portugueses”, ele diz na abertura: “Sou um poeta brasileiro em busca de mim, equivale a dizer em busca da poesia que encontrei neste país de meus pais. […] Em Portugal conheci a verdadeira dimensão da poesia.”
Como entender tal afirmação, diante da alta poesia que esse poeta paulista vem criando, entre nós, há quase meio século? Jogo de palavras? Brincadeira? Não, num poeta de sua estirpe. A verdade, porém, é que sua “poesia portuguesa” continua fluindo, de livro para livro, numa espécie de mergulho no Tempo das origens, em busca de um “porto seguro” para escapar ao seu Destino de “náufrago”, tal como ele se descobre em Sete anos de pastor: “náufrago que sou à deriva de mim […] que me espere a nau no porto”. Sua “poesia portuguesa” assume-se “viajante” em busca de um Passado que, em essência, seria abertura para o Futuro.
Em A Memória do Pai, o poeta diz: “Nestas viagens pelos mapas dos navegadores / Portugal é mais que a distância de um oceano pai. […] Não mais navegarei em mim / com esta caravela que se vai / este poema que morre / no oceano antigo de meu pai.” Seria apenas recordação saudosista? Não, num poeta maior, como aquele que ainda em Sete anos de pastor, diz: “Ao povoar o poema / com as imagens de Portugal / faço apenas o caminho de minha volta.”
Essa “volta”, essa viagem ao “oceano pai”, onde a poesia “morre” e se eterniza, só revela sua verdade maior, quando lida através da ótica existencialista (a que ilumina as relações entre Ser e Tempo). Poeta que, desde seus poemas de adolescente, se revelou existencialmente atento ao Instante, num intenso corpo-a-corpo com o Hoje cotidiano/concreto, onde nossa efêmera vida se cumpre, ao atingir a plenitude poética/existencial, descobre em Portugal, para além das raízes familiares/afetivas, a grandeza das nossas raízes e nelas descobre o poder da Poesia, -o de eternizar na Palavra a voz efêmera do Homem.
Em termos existencialistas (nos rastros de Heidegger), o ser-para-a-morte que, angustiado, se fizera ouvir em sua poesia até então, descobre-se agora como um ser-feito-de-tempo. Em sua poesia inaugural (Noturno Maior. escr. 1958) ele já se sabia inevitavelmente efêmero e, angustiado, buscava no horizonte o Princípio. “Ser existência no caos da vida / E permanência no silêncio dos gestos […] E se estar vivo é isto / Eu quero apenas voltar / Ao ponto de origem.” Agora em sua “poesia portuguesa”, ele se descobre eterno, -sua Palavra (tal como a de Camões) se lhe revela como Testemunha destes nossos tempos de apocalipses e gêneses.
Como ele diz em Sete anos de pastor: “Só fui ser poeta / quando não tinha mais tempo / e me faltava o ar / quando / todos meus barcos de papel / já tinham afundado.” Em plena angústia do sentir-se ser-para-a-morte, efêmero, criando “barcos de papel”… de repente, o poeta se descobre ser-feito-de-tempo, eterno navegante no “oceano pai” da Poesia. Descoberta feita entre dúvidas e perplexidades, que se revela claramente na série “Poemas para a rainha”: dezesseis sonetos, de húmus camoniano, nos quais ele dialoga com a Poesia, “rainha” do Tempo absoluto, onde “morrem” as palavras, para eternizarem a vida vivida.
“Eis-me por vós em duelo / sem conhecer as armas / e saber que somente morrerei”.
“Não me imagino ser o vosso rei / nem de vós quero o dote soberano […] Não me fazei ausente em vossa casa / nem de vós me façais somente um servo. […] A mim me basta o que por vós pressinto / e ao me deixar da vida a vós não minto / em vos pedir razão para viver.”
Na poesia, mais uma vez, as raízes portuguesas fecundam o húmus poético brasileiro.
O lançamento
Fotos de Carmén Barreto