Entrevista: Álvaro Alves de Faria a caminho de Portugal - Parte 1 de 3
Floriano Martins
FM – Iniciemos nosso diálogo recorrendo a esta observação de Antonio Carlos Secchin de que a tua poesia se define por uma “poética do corte”, que incide em “uma espécie de dilaceramento da matéria, fendida em sua inteireza até esvair-se na morte”. Acerta o crítico? O que busca a poesia através de Álvaro Alves de Faria?
AAF – As palavras de Antonio Carlos Secchin sobre minha poesia não explicam estes livros que tenho publicado em Portugal. Ele se refere, sim – e eu concordo e muito – aos outros poemas, outros livros. Mas isso não significa que eu escreva dois tipos de poesia. Não. O que ocorre é que esta questão de Portugal, em mim, é uma coisa profundamente sentimental e existencial também. Você poderá ver no meu Trajetória poética – Poesia reunida, os 20 poemas quase líricos e algumas canções para Coimbra e Poemas portugueses. É outra paisagem poética. É outra coisa inclusive na minha vida de poeta. De ser humano também. Neste caso de Sete anos de pastor, o novo livro, a maior parte dos poemas foi feita em torno da lírica de Camões. Poucos poemas fogem disso mas, de alguma maneira, têm ligação entre si nas palavras, no texto invisível. Basta dizer que o livro começou a ser escrito, há perto de três anos, tendo por base o famoso soneto de Camões, cujo primeiro verso dá o título a este meu novo livro. Escrevi, então, poemas para Raquel, Lia, Jacob e Labão. A seguir, 16 poemas para uma certa Rainha, entre eles alguns sonetos metrificados. Fiz questão até das rimas. Há também uma parte dedicada a Inês de Castro, apenas dois sonetos, em que exploro especialmente o tratamento na segunda pessoa do plural e na segunda pessoa do singular. É importante dizer isso porque essa linguagem percorre praticamente todo o livro que tem a primeira parte chamada “Descobrimentos”, na qual sinalizo o rumo de minha poesia. O primeiro poema tem seis pequenos versos. É assim:
Há um momento certo
para se escrever um poema.
Uma hora certa.
Um dia certo
para se escrever um poema.
Uma vida inteira.
A seguir, também sinalizando para esse rumo, um poema que tem o título “Carta poema ao amigo Carlos Felipe Moisés”:
Escrevo amigo
em tom de despedida:
na falta de alguma coisa importante
para fazer
devo matar-me no final da tarde
ao anoitecer para ser mais exato.
……….
Fecharei a casa como se fosse viajar
apagarei a luz da sala
e lerei os poemas líricos de Camões
para não me afligir.
Não sei morrer
sem me debater entre os móveis.
Quer dizer, eu estou me despedindo da Poesia Brasileira, graças a Deus. Quero distância de muita gente. Quero estar longe. A distância pode ser a do Oceano Atlântico. Estes poemas de Portugal não cabem naquelas palavras generosas do poeta Antonio Carlos Secchin. Estes poemas são outra coisa. Claro que na minha vida li muitas vezes toda a lírica de Camões. Mas desta vez busquei nessa poesia um refúgio diante dos destroços e das ruínas que vejo por aqui na Poesia Brasileira. Fui buscar na poesia portuguesa o que me falta aqui, incluindo nisso até mesmo o relacionamento humano entre as pessoas. Cansei de tanta leviandade. Em certo momento é preciso mesmo se fechar no quarto e apagar a luz. Trancar as janelas. Incendiar a casa. É preciso se salvar.
FM – Dentro desta perspectiva outra, de que maneira então se mostra tua voz poética, onde ela se distingue do guia, considerando que vai além do palimpsesto?
AAF – Minha voz poética, para utilizar a expressão que você usou, se mostra da mesma maneira. No fundo, a poesia existe. A forma do poema é que pode mudar, neste caso particular de minha poesia em Portugal. E muda por um motivo bastante simples: é que em Portugal a poesia é levada a sério. Dificilmente se vê as leviandades às quais estamos aqui acostumados neste pobre país. Ao escrever estes poemas me imagino distante de todas as vulgaridades que a mim, pelo menos, atingem de maneira fatal. Sinceramente, cansei de tantas coisas ridículas devidamente amparadas por uma mídia que prima pela desonestidade e pela mentira. Mas voltando à poesia, que é o que interessa, de fato – se é que compreendi – rasga-se o pergaminho e procura-se outro. Apaga-se a palavra que nos habita e procura-se outra. E isso vale também para a vida. Minha voz poética se distingue na medida em que a gente procura se libertar desta angústia nacional no que diz respeito à Poesia e mergulha de cabeça nas formas poéticas verdadeiras que ainda existem. É preciso encontrá-las para que, afinal, não morra a poesia. Os poemas de Portugal são sempre um outro clima. São sempre um novo achado. São e serão sempre uma nova tentativa de redescobrir a poesia possível. Você poderá me perguntar se, neste caso, eu não estaria negando minha própria obra. Eu responderia que não. Pelo contrário, estou, sim, revigorando essa obra, com as palavras novas, achados poéticos consistentes, a construção do poema com novas ferramentas, o olhar cada vez mais agudo, a faca do poema cada vez mais cortante, cortando o pulso, esvaindo a vida, se preciso for. O que não dá mais para encarar é esta bandalha brasileira. Fui buscar em Portugal a poesia que perdi aqui. Neste país infeliz se perde tudo, a começar pelo próprio orgulho, se é que cabe esse termo, essa palavra. Fui buscar em Portugal o que aqui foi completamente destruído pelos vândalos da mediocridade, por essa “poesia” inventada nos suplementos culturais mentirosos, salvo algumas exceções que são poucas, pouquíssimas. Diria, meu caro amigo poeta Floriano Martins, que dentro desta perspectiva outra, a minha voz poética se encontra em Portugal, onde me deixo ficar, me deixo viver.
FM – Como se relaciona, a teu ver, estas duas tradições líricas, Brasil e Portugal? Há acaso um caminho com que se possa perceber? E quais as distinções valiosas?
AAF – As distinções valiosas são todas. As duas tradições líricas Brasil e Portugal não existem mais. A tradição lírica brasileira na poesia morreu, foi assassinada. A tradição lírica de Portugal continua portuguesa, continua séria. Não se pode debochar das coisas, e estou falando de poesia, de poema, da palavra esculpida e lapidada para a elaboração do poema. As relações podem ocorrer – ocorrem, na verdade – de maneira até pessoal. A lírica fui buscar em Camões, lá no fundo de Portugal. Fui buscar em Camões o que me faltava. Minha Geração – quase toda – consultou nos anos 60 os poemas de Fernando Pessoa e de Rilke. Estava lá, pelo menos para muitos de nós, a sinalização da poesia. Rilke talvez bastasse. Fernando Pessoa também, especialmente Álvaro de Campos para alguns, Alberto Caeiro para outros. Claro que, no fundo, estou simplificando as coisas. Essa Geração 60 foi tomando seus rumos dentro da poesia brasileira. Hoje restam poucos. Entre eles, eu. E nem sei se felizmente ou infelizmente. Essa é uma Geração que muitos escrevem com G maiúsculo feita quase só de vaidades lastimáveis. São poucos entre os poucos que há, que de fato estão preocupados com a Poesia. O que parece estar valendo é a política literária da sordidez. Isso a mim não importa. Não importará nunca. Fugi disso e fui parar em Portugal. Busquei na poesia portuguesa minha própria salvação poética. Não digo que lá seja tudo um mar de rosas. Não. Não é. Mas pelo que tenho visto e sentido, estamos ainda muito distantes da seriedade no trato da poesia.
Ocorre-me, neste instante, um poema deste Sete Anos de Pastor. Não sei exatamente porque me ocorre. Coloco-o aqui para talvez explicar melhor o que ainda existe de sentimento poético:
Que me sinta assim morrer antes da primavera
como se a querer sentir o que não sinto
como se a sentir o que não tenho e que não me dera
a dizer da verdade o que de certo apenas minto.
Diante desta minha veemência é possível que se pense que eu perdi totalmente o respeito pelos grandes poetas do Brasil. Não perdi, não. Muito pelo contrário quero ouvi-los sempre, quero estar sempre com Manuel Bandeira, com Cecília Meireles, com Eurides Fontela (que foi assassinada por todos nós), com Hilda Hilst (que foi também morta por todos nós), com Drummond, com Ferreira Gullar, com os de agora como Marco Luchesi, com o Alexei Bueno, com a Astrid Cabral, com a Neide Archanjo, o Carlos Felipe Moisés, o Roberto Piva, a Eunice Arruda e alguns outros. Poucos. Quero estar sempre com Álvares de Azevedo, com Augusto dos Anjos, e tantos outros poetas deste país que devem merecer respeito. Estou cansado de ver ainda discussões sobre o que apregoou João Cabral de Melo Neto, para quem o poema não devia conter emoção alguma. Eu quero, sinceramente, que João Cabral de Melo Neto vá para a puta que pariu. Não me interessa esse tipo de discussão, essa ladainha que se idolatra sempre nos chamados suplementos culturais deste país. Aqui até compositores de música popular que beiram à mediocridade são chamados de poetas. Não me interessa nada disso. Como poeta, estou no exílio. Minha poesia está em Portugal. Não tenho bilhete de volta. Nem me interessa ter. Morro por aqui mesmo, com a poesia que fui buscar em outra terra. As líricas brasileira e portuguesa não se relacionam mais. Simplesmente porque a Poesia de Portugal prima pela seriedade, enquanto a poesia do Brasil é violentada todos os dias por alguns facínoras com trânsito livre na mídia cultural mentirosa. E nisso pode-se perceber as distinções valiosas a que você se refere na sua pergunta. Essas distinções são fundamentais para viver. São fundamentais para a Poesia. São fundamentais para que se possa ainda respirar o ar possível. Para fugir da asfixia.
FM – Desconfio que tamanho ressentimento não te fará bem algum. É o tipo de sentimento que costuma cegar qualquer um. Por exemplo, gostaria que falasses de algo que parece quando menos curioso: há edições de poetas brasileiros em Portugal – em boa parte levada a termo pela Quasi Edições – e também se verifica o contrário, neste caso valendo referência à Escrituras Editora. No entanto, mesmo considerando a publicação de livros lá e cá, essas duas tradições seguem alheias a si mesmas. O que provoca e mantém este alheamento?
AAF – Você utilizou a palavra ressentimento para situar melhor o que lhe disse anteriormente. A palavra é correta. Se não me fará bem, pouco me importa. É preciso no entanto saber se não me fará bem como pessoa ou como poeta. Como pessoa é possível. Como poeta, não. Cansei, meu caro Floriano, das leviandades reinantes, destes suplementos culturais (salvo as raras exceções) feito só de cartas marcadas. A cultura não precisa disso. A cultura tem de fugir disso. Vivemos num tempo, infelizmente, em que só vale o que é leviano. Só vale o que não se sustenta diante de uma crítica séria. É preciso deixar claro, no entanto, que não estou generalizando. Sou até uma pessoa comedida nisso. Não quero generalizar. Mas fazer literatura em São Paulo ou no Rio de Janeiro, para citar apenas esses dois lugares, é correr um risco desnecessário pela falta de honestidade daqueles que lidam com a mídia cultural. Aí entra certamente o ressentimento. Mas veja bem, eu até que tenho o meu espaço. Por mim, não reclamaria de nada. Ocorre, porém, que as coisas estão sendo levadas para a mentira pura e simples, deslavada. Felizmente ainda existe o processo histórico. Há uma história sendo escrita. Não se poderá fugir dela. O ressentimento existe sim, meu amigo. É minha forma de reagir. Sou uma pessoa passional. Nada tenho de razoável. E minha forma de reagir, além de articular palavras até mesmo ofensivas, é fugir para a Poesia de Portugal. Enquanto tiver tempo para isso. Talvez regresse. É possível, porque as coisas não são definitivas, recorrendo a uma frase feita. Talvez regresse à minha base. E sei que essa volta será dolorosa.
Respondendo ainda por meio da própria poesia de Sete anos de pastor, deixo aqui alguns trechos do poema “Flautista”, que me explica bem:
Só fui ser poeta aos 60 anos
quando todos os poemas
já estavam escritos
e poesia não havia mais.
Tocador de flauta
sopro árias inúteis
dos que não sabem tocar.
………
Só fui ser poeta aos 60 anos
quando eu já não sabia viver
como se fosse preciso viver
para ser poeta.
Então descobri o mar
Mas era tarde.
Sempre me disseram
que a poesia era sacerdócio
por isso sempre andei
com uma extrema-unção no bolso.