SAUDAÇÃO DO POETA CARLOS FELIPE MOISÉS A ÁLVARO ALVES DE FARIA ABRINDO "TRAJETÓRIA POÉTICA", LIVRO EM QUE O POETA, EM 2003, REUNIU 40 ANOS DE POESIA. "TRAJETÓRIA POÉTICA - POESIA REUNIDA" (EDITORA ESCRITURAS), RECEBEU O PRÊMIO APCA COMO O MELHOR LIVRO DE POESIA DAQUELE ANO.
SAUDAÇÃO A ÁLVARO ALVES DE FARIA
Mudem-me os Deuses os sonhos, mas não o dom de sonhar.
BERNARDO SOARES
Reparou, meu querido Álvaro, na epígrafe? Acho que você assinaria em baixo, por isso a escolhi. E então já posso ir declarando, de saída, o porquê desta saudação: você soube manter esse tempo todo, intacto, o seu dom de sonhar, proeza mais do que merecedora, não só desta apagada saudação, mas de todas as saudações possíveis. Afinal, sonhar ininterruptamente, ao longo de quarenta anos; sonhar entre um século cujos símbolos mais visíveis desabaram num recente 11 de setembro e outro que mal começou, no qual, “se calhar, tudo é símbolos”; sonhar tanto e tão prolongadamente não deve passar despercebido.
Sim, claro, nem é preciso que você me chame a atenção: a epígrafe, o fragmento de verso incrustado no parágrafo anterior e o próprio título não são simples coincidência. Foi de caso pensado que convoquei o poeta dos heterônimos para me amparar (ou me “inspirar”, como se dizia em outro tempo) na abertura desta saudação. Você reparou também que o heterônimo ajudante de guarda-livros fala no “dom” de sonhar, isto é, na dádiva recebida. Até admito que possa ter sido assim, na origem: você talvez tenha recebido, um dia, junto com o talento (dos Deuses, da Natureza, do Destino, tanto faz: tudo é símbolos), esse dom precioso; mas eu me refiro ao fato de que você soube manter esse dom, e isto significa reconhecê-lo como algo precioso, cultivá-lo, aperfeiçoá-lo e utilizá-lo na melhor direção, dentre as apontadas por sua consciência. Numa palavra (perdoe-me o contra-senso), você conquistou o dom de sonhar. Penso que os deuses do Bernardo Soares, com ou sem inicial maiúscula, não tiveram nada a ver com isso. Se fosse apenas um “dom”, em sentido estrito, eu não veria motivo para saudá-lo; sendo como é, então, sim, meu poeta e amigo fraterno, eu o saúdo, nestes seus quarenta anos de poesia.
Mas eu falava em Fernando Pessoa, quando esbarrei no contra-senso do dom que se conquista, por oposição àquele que se ganha sem esforço, às vezes até sem merecimento. Ao começar a redigir esta saudação, meio sem pensar (só depois é que virou caso pensado), ocorreu-me fazê-lo à moda do poeta. Lembra-se, Álvaro, da “Saudação a Walt Whitman”? Sei de cor, desde aquele tempo, o primeiro verso: “Portugal-infinito, onze de junho de mil novecentos e quinze”, e em seguida vem um grito, que é como deve ser, aliás, toda saudação que se preze. Cravei, então, o título e pensei em começar: “São Paulo-infinito, onze de junho” (curiosa coincidência, não é mesmo?) “de dois mil e três”. Mas aí hesitei, fiquei olhando a tela vazia, os dedos tamborilando, nervosos, as bordas do teclado – do mesmo modo como, em outro tempo, contemplávamos a folha em branco, essa que pode “acolher, contudo, qualquer mundo”, lápis entre os dentes.
Fui reler o outro Álvaro, o de Campos, e logo reconheci que não era esse o caminho. Por que? Simples: na saudação famosa, o celebrado é só pretexto para que o celebrante se auto-celebre. No caso, diga-se de passagem, Pessoa está no seu pleno direito: a comprovada genialidade e a consciência disso justificam o pecado do auto-elogio. Mas nenhum de nós, meu caro Álvaro, está em nenhum desses casos. Você não acha?
No entanto, Pessoa insistiu em permanecer no meu rascunho – primeiro no título, em seguida na epígrafe, depois no fragmento de verso. Por que? Simples, de novo: porque o poeta português foi passagem obrigatória para os da nossa geração; porque quando você, Álvaro, começou a sonhar por escrito (não sei como nem com o quê você sonhava antes de publicar Noturno maior, em 1963), todos nós íamos descobrindo, com espanto, que o poeta português, de um modo ou de outro, já sonhara, por nós, muitos dos nossos sonhos.
O impacto causado, naquele momento, pela desabusada rebeldia do poeta dos heterônimos foi tão forte que um de nós (não vou revelar o nome, você talvez se lembre) jurava ser Fernando Pessoa, ressuscitado ou reencarnado, não sei bem. Não era blaque. Nosso amigo, tão imberbe quanto nós, dizia estar certo de que era o próprio poeta português, em outra roupagem, trasladado para a Paulicéia (“desvairada” é pouco), a fim de repetir aqui a mesma vida e, claro, a mesma poesia. Ele acreditava que Fernando Pessoa já vivera, não muito tempo antes (estávamos ainda em 1960), tudo quanto a ele, jovem poeta, fosse dado viver – sem se dar conta de que o cidadão Fernando Pessoa não vivera nada daquilo, era tudo ficção, tudo literatura. E nosso companheiro dizia essas coisas com o ar sereno de quem tranquilamente tivesse atinado com a óbvia missão que tinha a cumprir.
Loucura mansa, eu pensava, tão loucura quanto a outra, a de olhos esbugalhados, camisa-de-força e demais apetrechos. Nosso amigo-Pessoa-reencarnado, claro, era exceção; nunca soube de ninguém, naquele ou em outro tempo, que acreditasse em miragens dessas, ou que o confessasse. Mas é inegável que por trás da fumaça havia algum fogo: todos nós, naquela altura, partilhamos um pouco dessa loucura mansa, pelo menos na medida em que acreditá-vamos na vida expressa (ou inventada) em poesia como algo tão verdadeiro quanto a vida efetivamente vivida.
E você sabe, Álvaro, que não penso em influências. No seu caso, aliás, dos vários mitos poéticos da nossa época (Pessoa, Drummond, Bandeira, Vinícius e por aí vai), acho que o português foi quem menos o influenciou. Penso tão somente naquele “dom” de sonhar, que você carrega e cultiva desde o tempo em que Pessoa figurou, para muitos de nós, como o modelo ideal do poeta e da missão da poesia.
Mas nem por isso vou cometer o despropósito de especular sobre os sonhos que você, então, alimentava, pela razão irrecorrível de que não sei quais terão sido, embora desconfie – como diria outro de nossos mitos. Sei que tinham algo a ver com aquele consórcio entre vida e poesia, lembrado a propósito do nosso velho e já agora anônimo companheiro, o da reencarnação pessoana. Acho, Álvaro, que você prosseguiu, ao longo desses quarenta anos, admiravelmente fiel à forte impressão que nos passaram vários dos poetas que então líamos com entusiasmo (entre eles, Pessoa, especialmente o seu xará), a impressão de que a poesia “autêntica” (era assim que dizíamos, não era?), brota espontaneamente da vida, e você nunca abriu mão disso.
Sua obra toda, Álvaro, em suas muitas vertentes (a poesia, a crônica, o romance, o teatro, a reportagem, a entrevista), me parece ser o testemunho incansável de uma experiência de vida. Mas isso não a confunde com a autobiografia ou com o diário íntimo. Não acho que sua poesia seja confessional, não acho que se possa detectar nos seus versos, ou reconstituir, a partir deles, uma trajetória datada. Penso na experiência de um desejo, uma aspiração, um ideal, até fáceis de definir. Desde aquele tempo, Álvaro, você acredita que a poesia nos torna mais humanos.
Não pretendo especular sobre os seus sonhos, meu querido amigo, porque, afinal, Bernardo Soares tem razão: os Deuses (ou qualquer outro símbolo de teor semelhante) de fato mudam os nossos sonhos, não se cansam de bulir com eles, caprichosa e impiedosamente; de certo modo, e só para dar seguimento à alegoria do poeta, nós somos apenas o receptáculo provisório dos sonhos dos Deuses. Por isso, imagino que você já não acalente, hoje, os mesmos sonhos de quarenta anos atrás. Se eu cometesse a indiscrição de lhe perguntar, por exemplo, se você voltaria ao Viaduto do Chá, no teto de uma Kombi, megafone na mão direita, punho esquerdo cerrado, para cantar seu protesto, estou certo de que você diria: não! Mas estou certo, também, na mesma medida (perdoe-me o paradoxo), de que você diria, quase ao mesmo tempo: sim, faria tudo de novo, desde que…
Pois é, você acrescentaria um “desde que”, não é verdade? A condição, a circunstância e o apropósito já não são, já não poderiam ser os mesmos… Os sonhos em si, além do modo como possam ganhar a sua configuração em palavra escrita (ou berrada no meio da rua) importam menos que o dom de sonhar, seja lá com o quê. E é o que você tem feito, a vida toda, na mesma admirável convicção, ora aflita, ora jubilosa, ora desesperada, de que (outra vez Fernando Pessoa!) sonhar é preciso, viver não é preciso. Por que? Porque sonhar em poesia, como você o tem feito, é algo que brota, não sei se espontaneamente, mas brota, sim, da vida e para aí reflui, sem cessar.
É por isso, então, meu poeta, meu amigo fraterno Álvaro Alves de Faria, que eu o saúdo e lhe desejo muito mais sonho ainda – desse sonho benigno, capaz de nos tornar, quem sabe, um pouco mais humanos, e à vida, uma experiência (que não pedimos, mas de bom grado aceitamos) digna de ser vivida.
São Paulo (infinito?), onze de junho de dois mil e três
Carlos Felipe Moisés