ÁLVARO ALVES DE FARIA: UM POETA APAIXONADO PELA VIDA QUE SABE QUE A POESIA É SOLIDÃO E TROCA, PASSATEMPO E SACRAMENTO.
Publicado por Rubens Jardim em 02/06/2009 às 11h30
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Os que não são jovens devem se lembrar dos conturbados anos 60: guerra do Vietnã, crise dos misseis em Cuba, construção do Muro de Berlim, renúncia de Jânio, golpe militar de 64, morte de Kennedy e do papa João XXIII. Paralelamente a esses acontecimentos, ocorria a primeira transmissão em cores da TV brasileira, o Brasil tornava-se bicampeão do mundo no Chile e o astronauta russo, Yuri Gagarin, dizia que a terra era azul.
É dentro desse quadro que a voz de um jovem poeta ganhou destaque e notoriedade: Álvaro Alves de Faria. Com o lançamento do livro, Sermão do Viaduto, longo poema discursivo e com linguagem bíblica, feito em pleno Viaduto do Chá em 1965, Álvaro conseguiu despertar a atenção da mídia e reunir praticamente quase todos os poetas da chamada geração 60 de São Paulo. Segundo depoimento dele mesmo, “realizei nesse mesmo local nove recitais públicos de poesia, para onde eu levava uma kombi, quatro alto-falantes e um microfone.” Mas em 9 de agosto de 1966 esses recitais foram proibidos e acusados de subversivos.
Mas nem por isso o poeta Álvaro Alves de Faria deixou de publicar seus livros e de fazer a leitura de seus poemas em lugares públicos. Hoje, após 46 anos de militância poética, jornalística e literária, Álvaro é um dos poetas mais expressivos e atuantes da chamada Geração 60. E já recebeu os prêmios literários mais importantes do país. E sua obra, bastante diversificada, apresenta incursões pelo conto, romance, crítica literária, ensaio e teatro.
E sua Trajetória Poética, livro que reúne seus poemas desde o primeiro Noturno Maior(1963) até À Noite, os cavalos, —mostra definitiva e claramente o fosso que separa um fazedor de versos e um verdadeiro poeta. Nesse livro, de 668 páginas que enfeixa toda a sua obra poética, Álvaro imprime o timbre inconfundível de sua voz. Desesperada e amarga muitas vezes, mas sempre corajosa, afinada e necessária. Afinal, como todo bom poeta, Álvaro Alves de Faria sabe que a poesia é uma arma carregada de futuro. É fogo e fumaça. Passatempo e sacramento. Punti luminosi. Triunfo e derrota. Porta e abismo. Grito e silêncio.Solidão e intercâmbio.
PRATICIDADE
Abro o guarda-chuva japonês
Cinza
Em cima da minha cabeça
E caminho em direção ao banco.
Pagarei minhas contas
Olharei os olhos vermelhos
Da moça do caixa
E observarei suas unhas claras.
Conversarei com outros clientes
Sobre a vida
E direi que o governo é culpado de tudo.
Nunca mais esquecerei
Esta mulher de boca acesa
Na fila
Atrás de mim.
Sairei depois à rua
E me sentirei um magnata
Fora do tempo.
Encontrarei à manhã
Vizinhos tristes
E direi palavras desnecessárias.
Enfim
Sou um homem prático.
Já posso matar-me sem remorso.
A CASA
1
A casa é o inverso
Do corpo
Onde moram desejos
Não pessoas.
A casa é uma caixa
Onde calam, pressentimentos
Passos quadros
Poltronas
Não silêncios.
2
Na casa moram
Pessoas antigas
Retratos olhares.
Não é como o corpo
A mente
A casa
Onde residem receios.
Não é a casa
Um único cômodo
Para única pessoa.
A casa não é apenas
A porta a janela.
3
A casa desmorona
Como se não fosse uma casa:
A casa é uma pessoa
Não estrutura.
A casa guarda
As sombras
Mais nada.
SINA
Assim a sina:
Passo que anda
E volta ao mesmo lugar
Cavalo que salta
Patas de fúria
Terra que cobre a cara
Faca de duas lâminas
Duas faces na mesma sala.
Como uma laranja
De gomos maduros:
Sumo e resumo de si.
Como não é:
O rosto oculto desfeito
Rio por dentro
Que não cessa
E não passa.
APARÊNCIA
Não é um dia
Este dia
Mas um instante.
Nada além
Nem aquém disso:
Um momento.
Não é uma noite
Esta noite
Mas um apelo.
Nada mais
Nem menos que isso:
Um pedido.
Não é o mundo
Este mundo
Mas sim ausência.
Nem isso nem aquilo:
Só aparência.
OFÍCIO
Que palavra não nasce
se morrer é todo instante
que palavra
por nascer comove e sente
o que se aguarda e não vem?
Sílaba no verso do espanto
o que se tenta descobrir
como se possível
ainda fosse
a poesia que se imagina?
Morta a poesia
não mais se saberá da vida
nem do homem
nem da mulher
nem de ti
que ainda guardas no bolso
essa estrela que caiu do céu.
Que ainda recolhes
as folhas junto à porta
todas as manhãs derradeiras
como se fosse sempre
a primeira vez.
O poema é tão pouco
que mal cabe na palavra.
Tão pouca a poesia
que mal se percebe.
Não cabe no bolso de meu paletó
o poema inútil deste momento
nem a escassa poesia
do início deste verso.
Toda poesia brasileira
guardo numa caixa de sapatos
e ainda sobra espaço
para as coisas que não desejo mais.