REVISTA DE LETRAS, ARTES e IDEIAS
ESCREVER NUM TEMPO DE BARBÁRIE
Álvaro Alves de Faria*
“O Processo Violeta”, o mais recente romance de Inês Pedrosa revela, mais do que nunca, uma escritora vigorosa, que detêm seus caminhos, que desvenda e traduz sentimentos humanos nem sempre observados. Valores que quase sempre passam despercebidos e que, no entanto, determinam o sentido da própria vida. É preciso abrir os olhos e, sobretudo, sentir. É o que faz esta bela escritora de Portugal. Uma mulher livre. Uma vida de experiências marcantes que estão sempre vivas. Mas, antes de tudo, uma mulher livre. Que vê a literatura como resistência à procura de um mundo melhor. Vida intensa no Jornalismo, incluindo rádio e televisão. Com 12 anos de idade já escrevia textos literários. Essa trajetória de escritora começou com o romance “A Instrução dos Amantes”, publicado em 1992. A seguir, a vida caminhou como tinha de caminhar. Por sua atividade política, na área dos Direitos Humanos, chegou a ser considerada a Rainha da Parada do Orgulho Gay de Lisboa em 2005. Dirigiu a Casa Fernando Pessoa de 2008 a 2014. Isso ilustra bem a vida de Inês Pedrosa, que percorre vários caminhos, escrevendo sempre. Tradutora, dramaturga, cronista, sempre a palavra como resistência. As coisas não são fáceis em lugar nenhum. Na própria literatura defronta-se, em Portugal, com aquelas figuras bastante conhecidas também no Brasil, os aventureiros que seguem protegidos por uma crítica cada vez mais duvidosa e desonesta. Inês Pedrosa conhece a literatura brasileira. E conhece bem. E isso se estende também à música. À poesia. Por tudo isso, seus livros como “Faz-me falta”, “Fica comigo esta noite”, “Nas tuas mãos”, “A Eternidade e o Desejo”, Desamparo”, “Dentro de ti ver o mar” e o recente “O Processo Violenta”, além de outros, fazem parte da melhor literatura produzida em Portugal nos últimos tempos, romances traduzidos em vários países. Uma mulher livre. Que sabe o que quer.
P. — Inês Pedrosa, sinceramente, mas sinceramente mesmo, a literatura serve para quê?
R. — Para viver com mais intensidade. Sinceramente — embora a mim, tal como a Vladimir Jankélévitch, a sinceridade me interesse menos do que a verdade que nasce do amor, e que muitas vezes nos obriga a mentir.
P. — Como está a literatura em Portugal?
R. — Valente e variada, como sempre. Andamos a tentar salvar as palavras do naufrágio, cumprindo a tradição camoniana.
P. — Em que o Nobel a José Saramago beneficiou a literatura portuguesa?
R. — O Nobel de Saramago despertou a atenção dos editores internacionais para a nossa literatura. Saramago estava na Feira do Livro de Frankfurt, numa vasta delegação de escritores portugueses, quando o Nobel foi anunciado, e foi muito visível o interesse que esse anúncio criou em relação a todo o pavilhão português na Feira. Acresce que Saramago teve a grandeza de fazer um discurso generoso, logo ali, afirmando que a sua obra era fruto de uma língua de grande literatura e apelando à descoberta de outros escritores vivos dessa língua. Foi um momento inesquecível — e todos lhe devemos estar gratos pelo apoio que nos deu, e que se traduziu concretamente num aumento de traduções.
P. — Nós estamos diante e dentro de um mundo bárbaro. Evidentemente, penso no Brasil, caindo aos pedaços. Vale a pena escrever num tempo assim?
R. — Em tempos de barbárie, como muito bem diz e como muito bem sabe, não só vale a pena como me parece que é absolutamente necessário escrever. A palavra é um ato de resistência fundamental. E a fúria sempre foi uma grande musa — talvez a mais inspiradora.
P. — Como você se situa ao meio disso tudo que respondeu?
R. — Com serenidade e impaciência, que não são virtudes antagônicas.
P. — O que é viver mais intensamente com a literatura. A literatura tem esse poder?
R. — Sim, tem esse poder, porque nos transporta para outros mundos, outras existências, outros sonhos, outras visões. Quem lê vive várias vidas numa só. E quem escreve vive toda a História humana num tempo profundamente presente e simultaneamente exterior ao próprio tempo. Não há crítica nem prémio que valha a gratidão de um leitor a quem um livro mudou a vida — porque o despertou para si mesmo, porque o levou a pensar -ou porque, simplesmente, o consolou. É um poder imenso.
P. — Sobre a literatura de Portugal você me respondeu em duas linhas, algumas palavras. “Valente, variada”. Você diz que a literatura portuguesa tenta salvar a palavra do naufrágio e até lembra Camões. O que é isso?
R. — Diz a lenda que Camões salvou de um naufrágio o manuscrito do seu esplendoroso poema épico, Os Lusíadas, nadando até à costa só com um braço, e erguendo o manuscrito no outro, acima das ondas. É uma imagem forte e que me parece descrever bem o trabalho dos escritores portugueses contemporâneos, lutando contra as vagas alterosas da iliteracia funcional, que assolam o nosso país — como, de resto, grande parte do mundo. A língua portuguesa sempre deu literatura de altíssima qualidade e de extraordinária variedade — em particular, ficção e poesia. Portugal e o Brasil demonstram-no bem. Talvez por ser um país pequeno, antigo, aberto ao mundo, nostálgico dos mundos que desbravou, pobre e pacífico, Portugal desenvolveu deste cedo a arte de sonhar através da escrita, que é a arte mais barata, discreta e transfiguradora que existe. Um país velho tende a ser estruturalmente conservador, e a escrita é também um caminho de fuga a esse conservadorismo. O temor da afronta direta ao estabelecido, do ridículo e do escândalo levou os escritores portugueses à grande metáfora da poesia e da ficção — Portugal dá pouca filosofia, por exemplo, e a pouca que dá é de estrangeirados, figuras que se afastam do país para ousarem pensá-lo. Mas excede-se na ficção e na poesia, para onde canaliza uma extraordinária e contínua energia renovadora.
P. — Você diz ser necessário escrever nos tempos de barbárie. Por que?
R. — Para a denunciar. Para a estancar. Para a reverter. Para ativar a esperança e vencer o desespero. Para que a violência do pensamento vença o massacre da estupidez.
P. — Conforme afirmou, você se situa na literatura com “serenidade e impaciência”. Peço que se estenda nisso.
R. — Serenidade de nada esperar — nem reconhecimento, nem riqueza, nem nada de mundano ou material. Há muitos escritores que se perdem de si mesmos e do seu talento nas teias dessas ânsias tão contemporâneas. A impaciência de fazer mais e melhor, no curto tempo que é sempre o de uma vida. Aos 57 anos, sinto crescer essa impaciência de dia para dia: já não posso adiar-me, nem deixar que ninguém me adie em relação ao que quero escrever.
P. — Mas um livro é capaz de mudar a vida de alguém?
R. — Há livros que nos mudam a cabeça, porque nos fazem pensar de um modo que nunca antes tínhamos pensado, ou porque nos dão a conhecer camadas da realidade que desconhecíamos, e essa mudança altera-nos as decisões, as escolhas — e, portanto, também a vida. Devo uma grande parte do que sou a certos livros que li. Ter ouvido o meu avô materno declamar-me a lírica de Camões quando eu ainda não sabia ler foi fundamental. Ter lido essa obra-prima inclassificável que é “Novas Cartas Portuguesas”, de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa aos 10 anos de idade, e às escondidas, moldou-me definitivamente enquanto escritora e mulher — pelo muito que me deu a conhecer e sentir, e pelo vendaval de insubmissão que este livro é. Ter lido na adolescência Erico Veríssimo e Drummond de Andrade formou-me a música e a temperatura da liberdade. Como, mais tarde, lendo Camilo Castelo-Branco e Agustina Bessa-Luís, me confrontei com a colisão surda e permanente entre as pulsões individuais e o controlo social.
P. — Bonito isso, Inês. Bonito mesmo: “A arte de sonhar através da escrita”. Adorei. Fale mais sobre isso.
R. — O problema, Álvaro, é que essa frase é, para mim, tão concreta, que sinto uma dificuldade genuína em desdobrá-la mais. A escrita é uma arte de pobres, ascetas, solitários e sonhadores. É simultaneamente uma arte muito povoada e democrática, não só porque exige poucos meios, mas sobretudo porque dá voz a todos os seres, sem hierarquias. Creio que por isso floresce com particular fulgor na pobreza e na crise — porque feita de memória e sonho, os andaimes que nos sustentam sobre os abismos.
P. — É possível vencer “o massacre da estupidez”, como você diz?
R. — Claro. A inteligência conversa e desenvolve-se através dos séculos, a estupidez repete-se como farsa, parafraseando o que dizia Marx da História — mas não dialoga, não tem sequer vocabulário para isso. Se é verdade que assistimos a uma repetição patética de selvajarias do passado, é também verdade que estamos mais bem preparados do que nunca para as combater: nunca tivemos tanto conhecimento como hoje, nunca vivemos tantos anos, nunca o mundo esteve em tão grande e permanente inter-relação. Acredito muito nas gerações mais jovens, as mais bem preparadas da História da Humanidade. Não nos deixemos destruir pelos políticos-fake nem pelas fake-news: somos mais fortes do que eles.
P. — Inês Pedrosa, fale-me essa impaciência a que se refere.
R. — Impaciência de viver e escrever. Impaciência, também, diante dos muito visíveis retrocessos em relação a conquistas que tomávamos como quase adquiridas, como a igualdade de direitos e oportunidades entre as pessoas, independentemente de sexos ou etnias. Sei que se trata de uma crise temporária, que os fenómenos de perversão ditatorial e segregacionista a que assistimos hoje não destruirão a energia democrática profundamente enraizada na civilização ocidental — que, de resto, se tem vindo a expandir, embora pouca gente queira dar por isso — mas gostaria de ver um mundo melhor, antes de morrer. Daí a impaciência.
P. — Inês, acredito que em todos os países — e tomo por base o Brasil — existem aquelas figuras desalentadoras, tenebrosas, oportunistas, que agem na área da literatura, fazendo todo tipo de conchavos. Ao seu ver, Inês, o que é possível fazer contra esse bando de filhos da puta?
P. — Boa pergunta. Gosto muito da sua frontalidade, Álvaro. E põe o dedo na ferida: há, sempre houve e sempre haverá, esse bando de filhos da puta. Os piores são os sonsos, que não dizem ao que vêm, melífluos e insidiosos, agindo e torpedeando pela calada. Tenho grande experiência nesse particular sector de víboras, e a minha conclusão é que o que se pode fazer de melhor é evitá-los, denunciá-los — e, depois, ignorá-los, porque eles acabarão por morrer sufocados no seu próprio veneno, que é a única coisa que têm. Os canalhas tendem a ser também medíocres, tanto mais quanto mais se dedicarem à canalhice. À última grande canalhice que me fizeram, respondi criando uma editora e metendo-me a fazer o doutoramento.
P. — Daqui a pouco voltaremos a esses assuntos do cotidiano literário. Agora, peço que me fale sobre você, sua literatura, seus livros. Até agora correu tudo como você desejou?
R. — Desejei escrever, escrevi — e continuo a escrever. Tive a felicidade de encontrar um excelente editor, o Nelson de Matos que, quando eu era uma muito jovem jornalista, me disse: “Quando escrever o seu primeiro romance, eu quero publicá-lo”. Tive a alegria de encontrar, desde o primeiro livro, excelentíssimos leitores, que me estimulam a prosseguir. Os livros trouxeram à minha vida pessoas fantásticas, que vieram a tornar-se queridos amigos, em Portugal, no Brasil, em Espanha, em Itália, na Croácia, na Alemanha, nos Estados Unidos da América. Claro que nem sempre corre tudo como desejamos, mas sinto que tenho de estar muito grata a tudo o que o meu percurso me tem dado — e é de fato muito, e muito bonito.
P. — Sei que é difícil responder, mas acho que a pergunta é necessária, até mesmo para situar o escritor diante de sua obra. Em qual de seus livros você se encontrou melhor? Qual o livro que lhe agrada mais?
R. — É realmente difícil responder, mas a minha resposta mais imediata seria: o último. Publiquei este ano «O Processo Violeta», um romance em torno da ideia maturidade, em que retrato as mutações, muitas vezes mais aparentes do que reais, da sociedade portuguesa depois da revolução de Abril de 1974. Sinto que fui mais longe do que nunca neste romance, em que cruzo o velho mundo das touradas com o novo mundo do jornalismo e do sensacionalismo, e conto uma história de amor modernamente proscrita, entre uma mulher adulta e um adolescente. Penso que aperfeiçoo a voz ( o tom, o modo de dizer) e aprofundo a minha indagação sobre a condição humana de romance para romance — se não pensasse assim, não valeria a pena prosseguir na escrita. Creio que os meus três últimos romances são francamente melhores do que os cinco anteriores.
P. — Você citou nesta entrevista os brasileiros Érico Veríssimo e Carlos Drummond de Andrade. Você conhece a literatura brasileira? O que chega do Brasil em Portugal, na área da literatura?
R. — Conheço bem a literatura brasileira, sim — que é uma grande literatura. Quando eu era criança, lia-se muitíssimo Jorge Amado em Portugal — creio que sobretudo pelo erotismo, censurado pela ditadura na escrita dos portugueses. Lia-se também Erico Veríssimo, Manuel Bandeira, Lygia Fagundes Telles, Vinícius, Drummond… Tudo isso havia em minha casa, que não era uma casa de literatos — os meus pais eram ambos matemáticos. E, pelos 14 ou 15 anos, comecei a ler Marina Colasanti, que descobri numa revista feminina brasileira que se vendia em Portugal, a Nova, onde ela escrevia umas crónicas fantásticas, que muito contribuíram para o despertar da minha consciência feminista. Depois do 25 de Abril, houve uma fome de redescoberta dos escritores nacionais, e perdeu-se um pouco esse contato com o Brasil, que viria a ser retomado, a pouco e pouco, desde o fim da década de 80. Mas eu procurei manter sempre esse contato, lia tudo o que apanhava, antes de mais o grande Machado de Assis, e depois muitos outros grandes como Guimarães Rosa, Rubem Fonseca, Fernando Sabino, Nélida Piñon, Ignácio de Loyola Brandão, António Torres… Quando aterrei fisicamente no Brasil pela primeira vez, em 1999, os jornalistas e acadêmicos diziam-me que se notava a influência de Clarice Lispector no que eu escrevia — e eu respondia que sim, por vergonha de dizer que nunca a tinha lido. Comprei os livros todos dela — que então não estavam publicados em Portugal — e percebi que sim: de fato, mesmo sem nunca a ter lido, ela era da minha família. Hoje, Clarice está publicada em Portugal, como a maioria dos romancistas brasileiros, e alguns poetas. Aliás, abriu recentemente em Lisboa uma Livraria da Travessa, o que penso que será muito bom para a divulgação da literatura do Brasil. Depois fui descobrindo livros e autores extraordinários: «Crónica da Casa Assassinada» de Lúcio Cardoso, «A mulher que escreveu a Bíblia» de Moacyr Scliar, o teatro de Nelson Rodrigues, as memórias de Pedro Nava, Hilda Hilst, Adélia Prado… E acompanho com genuíno entusiasmo o trabalho da nova geração de escritores brasileiros: Luiz Ruffato, Tatiana Salem-Levy, Bernardo Carvalho, Cíntia Moscovitch, Marco Severo, Andrea Del Fuego, só para referir alguns… O Brasil tem um dos mais brilhantes pensadores contemporâneos, Antonio Cícero, que é também um excelente poeta. O Brasil dá muito boa poesia, como você sabe por experiência própria. A minha descoberta mais recente é a poesia fortíssima e cheia de humor de Angélica Freitas. E conto publicar em breve na minha editora esse monumento literário que é «Quarto de Despejo», de Carolina de Jesus.
P. — Você fala em políticos-fake e em fake news. E diz que somos mais fortes que eles. Eles são poderosos, você sabe. Acredita mesmo que somos mais fortes que eles?
R. — Acredito. Eles são muito medíocres. Não conseguirão enganar toda a gente o tempo todo.
P. — Por falar em filhos da puta, como dissemos aqui, sem generalizar ou dar recados indiretos: como funcionam em Portugal os chamados suplementos culturais e a crítica literária?
R. — Mal. Muito mal. Por causa das cliques & claques, dos interessezinhos, da pressa, das invejas, da pequenez do meio… — mas também por falta de espaço e de condições financeiras e de trabalho. As condições são quase impossíveis, e ninguém se mexe para as tornar possíveis. Eu tentei, na década de 90, quando trabalhava nos jornais — mas concluí que as pessoas preferem acomodar-se à miséria do que combatê-la, muitas vezes com a ideia (que os tempos atuais aliás têm provado demasiadas vezes infelizmente certa) de que, se agradarem a uns senhorecos, acabarão por subir na vida. Há o resistente JL — Jornal de Letras, Artes e Ideias, nascido no início da década de 80, que em tempos mais gloriosos foi semanal e agora é quinzenal, e que continua, graças ao talento e à energia do seu criador José Carlos Vasconcelos, como oásis cultural quase único na nossa imprensa. Os jornais diários estão a definhar e o espaço para a literatura nos suplementos culturais tem vindo a diminuir — o que, na minha perspectiva, é um erro brutal, porque as pessoas gostam mais de livros do que se pensa.
P. — Por falar em 25 de Abril, em que a Revolução dos Cravos mudou a literatura de Portugal?
R. — Imediatamente após a revolução houve uma sensação de desapontamento porque se esperava que surgissem grandes obras que teriam estado encerradas nas gavetas dos escritores, por causa da censura. Mas o pior da censura é que conduz à desistência: para quê escrever, se não vamos poder publicar? No entanto, volvidos uns anos, no início da década de 80, surgiu em força uma nova geração de prosadores e poetas, a chamada «geração da Guerra Colonial» — Lídia Jorge, Mário de Carvalho, António Lobo Antunes, Hélia Correia, Eduarda Dionísio, Teolinda Gersão, Al Berto, Hélder Moura Pereira, por exemplo — , e na década de 90 uma geração de escritores já formados na pós-revolução, e depois do novo milénio uma terceira geração. Os escritores já consagrados antes do 25 de Abril — de Agustina Bessa-Luís a José Cardoso Pires, de Maria Teresa Horta e Natália Correia a Virgílio Ferreira ou Nuno Júdice — produziram algumas das suas melhores obras neste período, com uma mão progressivamente mais livre. A língua e a voz de cada escritor tornou-se mais autêntica, mais ousada, mais aberta e luminosa. A censura era feroz, não só quanto à expressão dos cismas sociais e políticos, mas também quanto à expressão do erotismo.
P. — Inês Pedrosa, a situação política de Portugal de alguma maneira interfere na sua obra literária?
R. — . A vida da polis interfere em todas as situações ficcionais; do maravilhoso “D. Quixote” de Cervantes ao épico “Guerra e Paz” de Tolstoi ou ao erótico “A Insustentável Leveza do Ser” de Kundera, tudo é política e a política está em tudo e marca todas as relações humanas — de um modo claro ou subterrâneo. Essa ligação, no que se refere aos meus romances, é particularmente clara em “Nas Tuas Mãos“, que conta a história de três mulheres ao longo do século XX português, e “Desamparo”, que fala de pessoas da cidade que foram empurradas para o campo pela recente recessão, e que se confrontaram subitamente com uma radical mudança nos seus horizontes e expectativas. Muitas vezes os escritores recusam a aproximação entre literatura e política, temendo que essa proximidade diminua o valor estético e a intemporalidade das suas obras, mas penso que a fronteira a estabelecer é entre a reflexão política profunda que, para mim, identifica a própria obra de arte, e a mensagem panfletária superficial, que é a sua antítese.
P. — Finalmente, quem é Inês Pedrosa?
R. — Uma mulher que escreve para se entender e para entender a condição humana. Amiga dos seus amigos, amante dos seus amores. Apaixonada e veemente. Frontal e, felizmente, cada vez mais livre.
*Jornalista, poeta e escritor
São Paulo — Brasil