POEMA PARA SOPHIA (TRECHOS)
Procuro-me em Portugal
e vejo-te morta, Sophia.
Vejo os livros que escreveste.
Falta-me um pedaço em todas as coisas neste dia.
Te vi uma vez a dizer poemas
com uma voz triste
e uma blusa escura, talvez cinza.
Os poemas então se calaram
e as palavras mostraram que não tinham razão de existir.
Explico porque:
as palavras enganam o poema e o poema finge que acredita,
o poema é inútil e a poesia invisível dos objetos desapareceu.
Ao te escrever este poema tentarei fugir da poesia,
que é matéria que não me interessa mais.
Sabes, Sophia, que, sendo um poeta brasileiro,
tenho por ti a estima que merecem as mulheres que são deusas,
que, no entanto, não eras – eras somente poeta.
Morreste sem que te pudessem dizer mais algumas palavras,
como se isso fosse necessário.
Peço-te licença para chamar-te de tu,
a te viver nos livros brancos que deixaste,
que já são memória de Portugal.
*
Na Rua da Condessa, Sophia, lembro-me de ti,
fidalga na poesia que fizeste das raízes de Portugal,
sobretudo me lembro de ti porque aqui na Rua da Condessa
sinto o cheiro do mar que vem de algum lugar que não percebo,
talvez de alguma ostra guardada no olhar de alguém,
de alguma mulher que há pouco por aqui passou
a deixar no ar o gosto de um poema que se perdeu.
Deixo então calar-te a poesia que te segue
como seguem as aves no vôo das tardes escuras de julho.
Por te valeres dos gestos, guardas no colar algumas pedras delicadas,
de tal beleza
que teu rosto salta da moldura que te cerca.
Mais do que o silêncio que fere a poesia,
Portugal te habita num tempo dividido nas amoras bravas do verão,
este país que tem a voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Deixa-me então cantar contigo, Sophia,
porque também padeço desse mal
nas praças brasileiras em que vivo
a debater-me entre a poesia e a inutilidade do poema,
deixa-me de ti e de outros poetas portugueses
colher as últimas palavras que penso guardar em mim para sempre.
Porque assim queres, sais da vida com teus passos lentos,
como se a adivinhar os caminhos e os olhares das frestas das janelas,
onde se escondem os dias derradeiros,
aqueles já apagados nos calendários,
com números que também marcam as páginas dos livros
que estão mortos, sobretudo os de poesia,
aqueles que tentam sobreviver ao desespero dos poetas.
*
Nas ruas de Lisboa caminho passos incertos,
como se estivesse a temer por alguma coisa,
ando rente às lojas a ver casacos
que não caberiam numa bolsa de infortúnios.
Vejo-te então entre as pessoas de blusas negras nos ombros,
caminhas como as ovelhas pelas montanhas.
Te ofereço um pêssego e mordes com dentes brancos de porcelana
e deixas escorrer a seiva dessa fruta que me desperta
diante de ti que te foste de teu poema
e saíste de uma sala como saem as aves de seus ninhos,
ao anoitecer.
Ninguém profana o mar, Sophia, sabes melhor do que eu.
E quando me dizes que ao profanar o mar
trai-se o arco azul do tempo,
sinto dentro de mim o tamanho de um ferimento
que me escorre pela face como um rio que vai adiante,
silencioso em suas águas, como definitivo.
Pois, como sabes, da memória que se guarda
há espantos a descobrir como se fossem um espetáculo num palco,
pessoas de braços abertos a colher as últimas avelãs,
teu verso que se perde entre as horas dos dias,
e o poema que da chuva feito se desfaz nos telhados.
Conheço tua face e teu lado esquerdo,
onde tens escondidas as palavras que não dizes,
já que a poesia se detém à face clara do poema,
mas não é tempo agora de redizer a vida,
como se assim a poesia pudesse sobreviver ao mar
que te contempla e que contemplas com olhos brilhantes.
Por estas alamedas de ciprestes e árvores desconhecidas
vais a colher os frutos maduros, a maçã que caiu ao chão,
a cereja com gosto vermelho de açúcar
e a concha fechada em si no universo que não ousas.
*
Não sei se percebes, Sophia,
já que neste poema que não é poema,
faço a fotografia possível do que me invade
com a notícia de que deixas o mundo.
O que se salva é a poesia feminina,
esse olhar que diferencia o poema.
Tento escrevê-la, mas falta-me a alma de mulher,
o gosto à beleza e aos dons invisíveis,
aquele gesto da palavra que se estende a tudo
e faz renascer o brilho que se perdeu.
Falta-me, no entanto, essa alma que não tenho,
sensível à face que se oculta,
quando o poema salta do lábio
e se deixa esquecer para, no esquecimento,
revelar a razão de sua existência.
Pois quando acaba a poesia,
a morte é mais lenta que de costume,
quando acaba o poema,
o verso se estende na plena ausência,
como se fosse assim
juntar as sílabas e o ritmo possível,
pois quando acaba a poesia
também acaba o que nunca teve início,
também acaba o que não existe,
o objeto derradeiro que se coloca nos armários da casa,
nas páginas dos livros,
nas letras das estrofes que não servem para nada.
Pois quando acaba a poesia
também acaba o ar e a respiração,
cata-se com os dedos úmidos a água da pele,
a que não escorre, mas seca,
como a ferida que se transforma na cicatriz para sempre,
essa poesia
essa poesia
essa poesia
que fere e desperta as distâncias.
*
Hei de calar-me quando chegares
e te deixarei falar o que não queres
e dirás o que não sentes
nem sentirás o que não te apetece dizer.
Venha-me de ti o que sonhaste um dia,
por saberes voar com asas que se abriam imóveis
e te levavam para onde nasceriam as manhãs de Portugal.
Que poema dirás quando deixares para sempre o teu país,
se todos os poemas te falam à vida
e fazem parte de teu sangue
e da língua que falas e escreves,
os versos que agora te cobrem ?
Destas ruas de Portugal tiro de mim o que ainda me resta,
mas sei que a poesia insana me alcança,
como punhal que entra profundo e arranca o sonho,
desses que não existem mais nem nos livros de poemas.
O poema, no entanto, é a palavra morta,
como estás, imóvel em ti, dissoluta, desfeita, completa.
Não sei o que faço por aqui a caminhar sapatos perdidos,
em volta de mim junto às praças e às pessoas,
nas calçadas que não me levam a lugar nenhum.
Tenho a notícia da tua morte e isso é tudo neste momento,
como se todos os momentos terminassem assim
e sei
que todos os momentos terminam assim.
A poesia é pouca e nada significa, embora poeta que me faça
não sei explicar-te do sentir que envolve os objetos
e outras coisas que não contam,
principalmente as folhas amarelas das árvores.
Agora sim vejo teu rosto já infinito
e tuas mãos invisíveis a virar as páginas
de um livro que não lês.
Ninguém profana o mar, Sophia,
porque assim se canta o poema numa guitarra de Portugal,
como disseste em teu poema