Poeta
Álvaro
Alves
de Faria

Canal do poeta

Poemas 3

22.

Pouco sei desta memória
das vidas que desconheço

nem me sei voltar em mim
neste tempo em que padeço

a misturar todas as coisas
no que se mostra do avesso

nada sei do que me faço
nem da dor sei o começo

nunca vou onde me quero
nem me faço o que me peço

espero que chegue o dia
nesta noite em que me esqueço

minha palavra que morre
no silêncio mais espesso

vivo de mim a fugir
onde sempre permaneço

para dentro deste mar
onde em sonho me arremesso

de meu quarto sempre parto
a esperar por meu regresso

se viver é meu desejo
de morrer não me impeço

pouco sei desta memória
das vidas que em mim pereço

tantas mortes que perdidas
têm em mim seu endereço

os navios que partem breves
no oceano que escureço

este frio em minha pele
nesta blusa que não teço

quando vou ao meu encontro
mais em mim desapareço

ao fazer o meu discurso
as palavras emudeço

às vezes entro num parque
e ao ser feliz me entristeço

quanto mais me quero vivo
dentro de mim adoeço

não percorro meu jardim
pelas flores que feneço

vivo por mim a rezar
mas sempre destruo o terço

não olhar dentro de mim
é assim que me conheço

faço tudo em meu contrário
nesta escada que não desço

tiro o chapéu às pessoas
mas no gesto me despeço

só me vejo em minha ausência
encontrar-me não mereço

quando a andar evito as pedras
muito mais em mim tropeço

nada sei desta memória
no entanto resplandeço

assim se faz o poema
na medida que não meço

sei-me inútil na poesia
na palavra que adormeço

quanto mais explico o verso
quase nada esclareço

e quando me torno bárbaro
na verdade me enterneço

preciso dos meus cuidados
mas em mim me desguarneço

sei que a dor me mata aos poucos
mas com ela me envaideço

brilha-me o sol à janela
mas só a treva enalteço

no espelho em que me vejo
nada em mim me reconheço

falam-me os provérbios sábios
mas com eles ensurdeço

quando penso em nascer
sinto mais que envelheço

e quando me penso lúcido
muito mais me enlouqueço

quanto mais chega a manhã
mais em sombras anoiteço

quanto mais me desfiguro
mais comigo me pareço.

De “A memória do pai”. Coimbra, Portugal, 2006

Porque calais em mim tamanho pranto,
deixo que morra aqui vosso destino,
marca-me o ferimento em vosso espanto,
o que me aguarda em vós, por desatino.

Já sabereis, Inês, em vosso encanto,
o que da vida a fúria que previno
ao vos guardar em mim, mas sei, no entanto,
que esta dor vai além do que imagino.

Morta em silêncio, Inês, assim perdida,
vós rainha que sois no encantamento
que sempre tive em mim por vossa vida.

Em vossa morte, Inês, em desencanto,
a voz que some e grita meu lamento
na dor que guardo agora como um manto.

De “Inês”, Coimbra, 2007

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