POESIA LÍQUIDA
Fabrício Carpinejar – São Leopoldo – RS
Nada de imitar o Tejo. A poesia do escritor paulista Álvaro Alves de Faria lava as calçadas de Lisboa e Coimbra, captando a sensualidade das ladeiras, a presença imponente das mulheres na janela, os cafés recolhidos nos devaneios do mundo, as praças e os ciscos do céu. O jornalista e crítico, premiado com o Jabuti, 60 anos, autor de 14 livros de poesia, acaba de lançar Poemas portugueses e relançar 20 poemas quase líricos e algumas canções para Coimbra, ambos pela editora Alma Azul, de Portugal. Representa o ápice de uma trajetória, que muda o curso para não mudar. O mesmo Álvaro do engajamento, do protesto, da análise cítrica da realidade cede espaço para um novo, maduro, meditativo, sem artifícios para cantar a vida em toda sua incompletude. Se antes era movido por uma indignação contra a ditadura (a política dos anos 60/80 e a dos movimentos literários de sempre), agora vigora o rigor da memória, um modo socrático de ser mais dúvidas do que certezas.
É versando sobre um outro país que ele encontra sua intensa brasilidade, aproveitando “esse oceano que nos engole e nos completa.” Versos secos, doloridos e serenos, como se a dor fosse gêmea da alegria. Recusando o derramamento confessional, o ritmo é dos passos pesados nas pedras, dos baques surdos, da consciência extrema, arrolando os arquétipos familiares. Caminha “como se ora por dentro”, na comoção de um estrangeiro que lê a si mesmo em cada esquina, sem mapas e turismo, numa urgência tão diferente da pressa. Ao invés da claridade européia, o turno dominante é o da noite, das sombras. Lisboa significa “o paletó escuro de seu pai”. Inundado das cidades que andou, define o que sente a partir de personagens alheios. É um alheamento íntimo, de quem se permite entrever nos passantes, a exemplo da costureira “a se olhar nas agulhas”. Como voltas na mesma quadra, a caminhada é obsessiva, o tom grave de um inventário. “As mulheres de negro/ que não caminham em mim,/ mas terminam em mim,/ como se concluem os rios,/ esta voz que canta não sei onde,/ quase lamento não sei de quê.”
Em entrevista ao Rascunho, Álvaro Alves de Faria contextualiza suas novas obras, comenta a geração de 60, a qual integra, e afia os “punhais incertos” da linguagem.
Com os dois livros tematizando Portugal — o relançamento 20 poemas quase líricos e algumas canções para Coimbra e o novo Poemas portugueses —, sua poética alcança uma brasilidade, um desprendimento reflexivo, que não se verificava nos títulos anteriores, sempre engajados às circunstâncias sociais e ao tempo do grito. O senhor foi procurar lá fora uma estranheza necessária para compreender as lembranças?
Os dois livros publicados em Portugal nasceram em mim com uma força que poucas vezes senti dentro e diante da literatura. Ao meu ver, trata-se de um mergulho ao passado, a distância, ao longe, ao que sempre permaneceu vivo dentro de mim. Ao fazer o prefácio dos 20 poemas quase líricos…, a ensaísta portuguesa Graça Capinha, da Universidade de Coimbra, escreveu que o livro era um mergulho na memória da memória. E para explicar isso a gente tem, talvez, de sair da literatura e entrar no existencial. Os poemas, no fundo, mostram minha antecedência, esse lado da vida ligado a Portugal. Não é à toa que dediquei o livro aos meus pais portugueses, minha mãe de Anadia, meu pai de Angola. É preciso dizer que os 20 poemas… foram escritos num fluxo que foi arrancar da carne e da alma as palavras necessárias para o poema e, surpreendentemente para mim, os poemas nasceram escritos com o Português de Portugal. E nasceram descrevendo Coimbra de maneira tal que os próprios portugueses se mostraram admirados. Como, afinal, um poeta de outro país pode entrar assim em Coimbra e descrever sua paisagem como se estivesse a cavoucar o chão? Eu não saberia responder. O que sei é que os poemas de Coimbra marcaram uma fase nova na minha obra poética, e isso poderá ser constatado no livro A palavra áspera, que sairá ainda neste ano no Rio de Janeiro. Os poemas de Coimbra abriram uma porta que eu não sabia existir. Essa poesia está exposta, também, nos Poemas portugueses, na poesia de Portugal, nos caminhos de Portugal. Não saberia explicar como isso poderá representar uma brasilidade, assim como você coloca. Todas as palavras têm sua medida e sua circunstância. O Brasil é o país dos desencantos. E isso sempre fez parte da minha poesia, na questão literária, política e social. É possível concordar com você, quando diz que fui procurar lá fora uma estranheza necessária para compreender as lembranças. Isso aconteceu. Tinha de acontecer.
Procura realizar um inventário, entender a figura paterna e definir um jeito de assentar a casa. Ocorreu essa intenção de estar ‘aberto’ (e não fechado) para balanço? Essas são suas obras mais pessoais em quarenta anos de poesia?
Não, não são minhas obras mais pessoais em 40 anos de poesia. Acredito — e assim espero — que não sejam um inventário. Esses poemas, como já disse, estão até mesmo fora da questão literária, porque estão dentro da existência. Falar em balanço é quase certo. Chega uma hora em que é mesmo necessário se envolver nessa coisa de se explicar por dentro, porque escrever poesia é um exercício muitas vezes dolorido, esse rasgo na própria carne, essa poesia de sentir e não apenas de construir palavrinhas, como vem ocorrendo infelizmente neste tempo de inversão de valores. A intenção não foi um balanço, a que você se refere. Sua pergunta é uma pergunta de poeta, que você é. Os poemas certamente já existiam dentro de mim, no olhar, nos dedos. Foi preciso essa explosão de imagens e cores e palavras e desejos e mortes. Foi preciso renascer.
Em sua procissão pela memória, do que se “arrepende de não ter feito”?
Fiz tudo que sempre desejei, na literatura. A literatura e a poesia, especialmente, são um ofício, são esse caminhar sempre em busca não se sabe de quê. Em busca da solidão absoluta, do morrer minutos, horas, meses, anos. De fazer do grito a canção possível. De fazer do tempo e da própria poesia a possibilidade de viver o poema e a arte do poema. A procissão pela memória continua, as palavras querem renascer, o poema grita nas esquinas. Acredito ter feito tudo dentro de minha possibilidade de fazer. Mas talvez me arrependa de ter me afastado da poesia e da literatura por sete anos, por medo. Foi quando proibiram O sermão do viaduto, em 1966, por motivos políticos. Não fui mais falar no viaduto do Chá e também deixei de escrever. Só voltei a publicar poemas em 1973, com o livro 4 cantos de pavor e alguns poemas desesperados. E tive problemas outra vez. Hoje, eu vejo que tudo isso fazia parte daquele contexto de sombras.
Poemas portugueses revela uma postura lírica de aceitar o imprevisto e o improviso. Toda rua é a possibilidade de maravilhamento, recusando roteiros e mapas. Assim como andamos a esmo em cidades desconhecidas, também podemos andar a esmo dentro de nós?
Podemos, sim, andar a esmo dentro de nós. E sua imagem nessa pergunta é poesia pura. Acredito até que é preciso andar a esmo dentro de nós, andar como não se anda, assim como acordar os dias possíveis, a ave que morre, pássaro de incêndio nas praças e nos acenos. A rua sempre será uma possibilidade, dentro e fora da arte. Dentro e fora do mundo. Sempre será essa possibilidade do encontro sem mapas, sem roteiro. Os passos sempre se perdem dentro dos sapatos. É bom que consigamos viver o lírico e o imprevisto, para que tudo possa se concluir. Assim é a poesia a ser captada para o poema, para a construção do poema que tenha o homem como medida, as mulheres, as plantas, os bichos, o universo.
Cada detalhe é palmilhado como instante mediúnico, de revelação, seja na observação dos varais — “a louça verde das toalhas” —, seja nas distorções dos espelhos dos cafés. Trata-se de um elogio à paciência, firmando uma crítica à pressa e à velocidade da informação?
Eu volto ao mergulho na memória. E quando falo do existencial, fica aí subtendido o mediúnico, a que você se refere. O mediúnico na acepção mais correta da palavra. Aquele estado em que chega o poeta na sua própria revelação, vendo tudo que já conhecia antes, de tantos séculos, de tantos livros, de tantas palavras, de tantos caminhos e noites, e dias, e descobrimentos, nos varais da mãe, o sol que queima e faz nascer a planta. A música dos becos de Portugal, onde vive a alma da palavra e da poesia. A vida existe, é preciso que sempre se lembre disso. Existe para ser vivida, essa etapa de se guardar no planeta doente, em estado terminal. E de repente você percebe que não é preciso correr, nem se apressar, embora quase tudo seja urgente. Não. É preciso, sim, calar mais fundo essa poesia das coisas, que quase ninguém percebe. Essa coisa que está a morrer, esse gesto de solidariedade do tempo, da escuridão. Eu quero a louça verde nas toalhas. Isso faz parte da poesia e faz parte do poema.
Caminhar pressentimentos seria uma forma de perdoar o futuro e admitir que nada será acrescentado ao que já foi vivido? “A poesia nada pode senão calar-se/ por dentro das palavras.” O senhor nega a literatura para afirmar a vida?
Não. No meu caso, literatura e vida são a mesma coisa. Caminho os pressentimentos sem perdoar a mim, não o futuro. Até porque eu não sei o que é o futuro. Pouco sei de meu presente e do presente do mundo. Não sei o que é o futuro, mas posso idealizá-lo. Tem de ser idealizado. Tem de ser construído e isso vale também para a literatura, especialmente para a poesia. Para essa poesia que se pretende testemunha da vida e da arte. Tem de ser assim. É impossível separar o homem de sua obra. E será sempre possível e necessário acrescentar sempre mais o que já foi vivido. Mas diante da brutalidade cotidiana, o poeta talvez se cale, mas não para sempre. A palavra é uma arma que corta. É preciso saber usá-la com sabedoria, para que não se perca nas nulidades e na inconsequência. Vivemos um tempo inconsequente, principalmente dentro da literatura, nesse jogo de cartas marcadas, nessa paisagem sombria de desonestidades a toda prova. A palavra é a arma, a lâmina, a gilete. Ela pode ferir, pode até matar. É preciso, pois, cuidado. Então, é possível responder: Não nego a literatura para afirmar a vida. Eu nego a vida para afirmar a literatura.