POESIA LÍQUIDA
Fabrício Carpinejar – São Leopoldo – RS
É a poesia do circunlóquio, da andança, que evoca a coloquialidade de Fernando Pessoa ou os recortes urbanos de Manuel Bandeira. Percebo a insistência da oralidade, da repetição, a intenção de uma fluência líquida. A ideia é passar mais uma poesia recitada do que escrita?
Os recortes urbanos de Manuel Bandeira, sim. E também a coloquialidade de Fernando Pessoa. As palavras e sons repetidos dentro do poema são propositais. Isso faz parte da construção do poema. Depois de tanto tempo lidando com as palavras, o poeta sabe como colocá-las nessa construção de todos os dias, de todos os momentos. No caso não sei o que seria uma poesia recitada, mais do que escrita, como você pergunta. As leituras de poemas que costumo fazer implicam em dizer o poema escrito. Eu falo bem os meus poemas. Tanto que quero voltar ao início dessa história de Portugal. Em 1998, fui convidado a participar do Terceiro Encontro Internacional de Poetas, na Universidade de Coimbra. Isso foi o início de tudo. No dia da minha leitura, no pátio Faculdade de Psicologia, até os poetas estrangeiros que não entendiam o português — e eram dezenas — aplaudiram aos gritos o poema Eldorado de Carajás, que li com raiva, com indignação. Não foi o papel de um ator. Não. Ali estava um poeta indignado gritando as palavras num poema de dor. Por causa desse poema — que hoje faz parte de algumas antologias publicadas em Portugal — eu acertei com a editora Alma Azul, de Coimbra, a publicação de um livro a cada ano e meio. Voltando: os poetas estrangeiros aplaudiram de pé, mesmo sem entender, por causa do som das palavras, por causa da construção do poema, por causa da mensagem do poema. Nesse caso — como nos próprios livros de Portugal — eu escrevi as palavras para a leitura do poema e também para a grafia do poema. As duas coisas conjugadas. Um pequeno poema meu bastante admirado em Portugal, que tem o título Destino, serve de exemplo. Tem apenas quatro palavras e fará parte de A palavra áspera”. Alexei Bueno, que escreveu o prefácio do livro, diz tratar-se de um achado. É assim:
Meus sapatos
caminham
sobressaltos.
Esse tipo de construção poética é admirado em Portugal. Lá é possível dizer que os poetas — em sua maior parte — estão preocupados com a linguagem do poema e não com o desdobramento das palavras, no que eles também estão certos. Quer dizer: eu quero escrever poemas para ler em voz alta e também para a leitura reflexiva, intimista. É preciso chegar ao coração das pessoas.
O que o senhor deixou de São Paulo entre Coimbra e Lisboa?
Deixei a mim mesmo. E a partir de mim mesmo foi possível me descobrir melhor. Foi possível observar melhor. Foi possível calar melhor e melhor pressentir o som da terra e das pessoas. São Paulo é minha cidade. Nasci na rua Frei Caneca. Não faz muito tempo, uma pesquisa literária revelou que eu sou o poeta que mais fala de São Paulo em seus poemas e também nos romances que já publiquei. A cidade com suas navalhas está sempre presente na minha obra. Faz parte de mim, do olhar, da ferida que não fecha. A cidade está presente em tudo. Nada deixei de São Paulo entre Coimbra e Lisboa. Apenas recolhi a poesia dos trilhos dos comboios, do casaco de lã dos homens tristes, do xale das mulheres de cabelos brancos e do beijo triste das moças, das guitarras dos estudantes, o fado de Coimbra, o fado de Lisboa. Nada deixei, mas também deixei tudo. Eu me despi. Abri meu próprio tempo, minha própria existência, e deixei que a poesia se revelasse.
Seus poemas foram construídos a partir de uma destruição. Tudo é desfeito, questionado, para então ser reerguido?
Sua pergunta é ótima, como já disse aqui, uma pergunta feita por um poeta. É preciso, sim, destruir tudo, absolutamente tudo, todas as palavras, todas as frases, todos os poemas. Só assim será possível ao poeta refazer a própria palavra destruída. Refazer a vida destruída. Refazer a poesia destruída. Isso implica em viver a própria poesia, o próprio poema. Não é apenas pegar uma folha de papel e escrever. É e será sempre muito além. É preciso arrancar tudo do lugar. É preciso explodir o mundo e a cabeça das pessoas, para que afinal tudo possa ser reerguido. É o que exige o poema de seus poetas.
O senhor busca uma ligação direta com os elementos. Tal como Alberto Caeiro, esvazia a subjetividade pela aceitação plena do real. Não explicar, mas sentir. “Direi a ele coisas banais/ dessas que se esquecem no outro dia/ e que ninguém mais ouve por serem desnecessárias.” O mundo de tão pormenorizado, a poesia de tão metalinguagem, perderam o sobressalto?
É isso que se precisa evitar. A poesia tem de ser uma surpresa sempre. Uma surpresa feita de imagens, de sons, de música e ritmo. Sem esquecer o homem e o mundo. Sem esquecer a própria poesia. A poesia sobre a poesia. O poema sobre o poema. Afinal, que mundo é este em que vivemos? O que este mundo pode me oferecer senão o desencanto? Nesses versos que você cita em sua pergunta, do poema Os espelhos dos cafés, eu digo que também quero escrever a Fernando Pessoa, como o fez Mário Sá-Carneiro, antes de se suicidar em Paris. E direi a ele coisas banais, dessas que se esquecem no outro dia. Mas, como afirmo dentro do poema, não guardo no bolso um veneno capaz de acabar com meus sonhos. Digo ainda que tenho uma capa que me cobre à noite (a figura de Pessoa), quando também caminho sem saber ao certo o que fazer. O poema diz a verdade do poeta, não se trata apenas de uma construção literária: “No entanto isso não é nada diante da palavra/ do poema/ da memória/ do homem/ da alma”. Não penso em matar-me como o fez Sá-Carneiro, pelo menos por agora. Até porque a morte se anuncia em cada poema. Pelo menos nos poemas escritos com a vida, com o sangue, com cada gota de sangue, não como apenas mero exercício de literatura.
O fato de ser um estrangeiro dentro da própria língua propiciou essa naturalidade de acolher a realidade sem filtros?
Sim. Você chegou ao ponto. Você compreendeu, pelo poeta que é. Um estrangeiro dentro da própria língua. A língua portuguesa, tão violentada pelos algozes de todos os dias. A realidade é essa que aí está. Tudo passa a ser natural. E também somos naturais ao andar aos tropeços pelas valas, pelas velas, pelas vilas, pelos vãos. Somos naturais ao entrar na própria língua como estrangeiros e dela colher o que necessário se faz para construir o poema. O poema dói. O poema é a faca que corta. Estrangeiro dentro de mim mesmo.
Sua trajetória é marcada pelo protesto, pela crença quase absurda na palavra, tanto que foi preso cinco vezes pela ditadura militar como subversivo. Depois das certezas, mergulha no tempo das dúvidas, como exemplificado nos versos “nunca me verei/ de onde vejo tudo/ que não vejo”?
A palavra é obsessiva. Concordo que sou um poeta marcado pelo protesto, mas nunca fui panfletário, embora nada tenha contra a poesia panfletária. Sou pela veemência. E essa veemência faz parte de minha obra, tanto na poesia, romances, novelas, peças de teatro, crítica literária, no jornalismo. Meu amigo Carlos Felipe Moisés, que escreveu o prefácio de Poemas portugueses chama a atenção para esse fato, para meu comportamento como poeta diante da literatura e como cidadão diante da vida. Ele se refere aos tempos conturbados dos anos 60: “A tendência dominante, na altura, apontava para uma concepção de poesia como reação imediata da consciência alerta, e da sensibilidade exacerbada, em permanente estado de indignação diante das misérias e iniquidades do cotidiano. Hoje, 40 anos e mais de uma dezena de livros de poesia depois, é notável da fidelidade do poeta às matrizes de que proveio”. Quanto ao tempo das dúvidas, a que você se refere, ele existe sim e tem de existir sempre. A dúvida significa procurar sempre, extasiar-se sempre, ferir-se sempre. É assim que eu vejo a poesia. Ter sido preso cinco vezes por causa da palavra de O sermão do viaduto é para mim hoje, tanto tempo depois, motivo até de orgulho e riso. Assim como tenho orgulho de ter sido jardineiro com 12 anos. O primeiro poema eu escrevi com 11, ao entrar em contato com a poesia do poeta universal brasileiro Augusto dos Anjos, sobre quem escrevi uma peça nos anos 70, juntamente com amigo e ator Rofran Fernandes, que já morreu, infelizmente. Ter sido jardineiro com 12 anos me representa o aprendizado das mãos em lidar com a terra e com as raízes da terra. Tenho orgulho disso. Eu era um menino jardineiro e não sabia ainda o que me esperava vida adentro.
O que o Brasil tem a aprender com a poesia portuguesa contemporânea? E o que nossa produção tem a ensinar?
Tem de aprender a generosidade, embora a generosidade nada tenha a ver com a literatura e com a poesia. Mas eu digo generosidade com outro sentido. Em Portugal a poesia é levada a sério. É um país que realiza feiras de livros em todo lugar. Um país em que há leitura de poemas todos os dias. Um país que respeita sua história e seus poetas. A poesia portuguesa é das mais brilhantes e encantadoras do mundo. Neste momento, neste exato momento, eu me lembro da figura de Eugénio de Andrade: “Trabalho com a frágil e amarga/ matéria do ar/ e sei uma canção para enganar a morte — / assim errando vou a caminho do mar”. Ou: “Escrevo para fazer da luz/ velha dos corvos/ o limiar doutro verão”. Ou ainda: “A poesia não vai à missa/ não obedece ao sino da paróquia/ prefere atiçar seus cães/ às pernas de deus e dos cobradores/ de impostos”. Me lembro também de Mário Cesariny, os cabelos brancos em desalinho, as mãos frias e pequenas, os olhos escuros: “Hoje, dia de todos os demônios/ irei ao cemitério onde repousa Sá-Carneiro/ a gente às vezes esquece a dor dos outros/ o trabalho dos outros o coval/ dos outros”. Ao meu ver não temos muito a ensinar. Há muito, sim, a aprender. Especialmente quanto ao respeito que a poesia haverá sempre de merecer. E isso inclui a figura do poeta. Estamos muito longe disso.
O senhor pertence à geração de 60. Com Carlos Felipe Moisés, chegou a organizar uma antologia dos principais expoentes desse período em São Paulo. O crítico Pedro Lyra também empenhou-se em resgatar essa geração no Brasil. Mesmo com todo o revival, não sente que os poetas de 60 são subestimados (uma ilustração é que São Paulo ficou conhecida unicamente como berço do modernismo e do concretismo)? Quais foram as contribuições do movimento para sua formação? Há realmente uma identidade de grupo?
Em relação a mim — e respondo por mim — o concretismo (com letra minúscula, por favor) não contribuiu com nada. Contribuiu, sim, para aguçar minha crítica. Porque o que ocorre em relação a esse grupinho representa uma aberração odiosa que revela bem o subdesenvolvimento cultural do jornalismo que lida com literatura. E vamos incluir nisso também as universidades que foram tomadas pelos “poetas” (entre aspas, por favor) do concretismo. Uma turma de bandoleiros que manda em tudo e fecha as portas. A informação cultural ainda não foi democratizada. Pertence só a alguns ungidos que têm espaço garantido nos suplementos, tudo numa troca de favores vergonhosa, numa desonestidade que não pode existir num país que pretende ser sério, num jornalismo cultural que diz ser sério, mas não é. A mim o concretismo (letra minúscula, por favor) ensinou o que não devo fazer. Eu prefiro o poema escrito com palavras. Quanto ao Modernismo, acredito tenha sido um movimento importante. Mas nem mesmo os modernistas tinham essa visão na época. Para muitos, foi só uma brincadeira. Tanto que alguns voltaram aos poemas que combateram. O Brasil foi apenas um acidente em 1922. Já estávamos atrasados e ainda estamos. É muita mentira a ser engolida todos os dias. Não dá mais. Em relação à Geração 60, acredito que só a de São Paulo de fato marcou e tem registrada nomes que não deixaram de produzir e que se impuseram pelo valor de sua produção poética. O grupo se identifica sim, especialmente por sua diversidade. É um grupo de oito ou dez nomes que faz boa poesia, que não se aventura nos caminhos das facilidades. Quanto ao crítico e poeta Pedro Lyra, infelizmente, ele entrou pelo mesmo caminho dos que defendem a turma e seu longo ensaio e antologia Sincretismo — A poesia da Geração 60 resulta num trabalho que eu não classificaria como desonesto, mas falho, porque não procurou saber de fato quem existe ou não existe em relação a essa geração e particularmente no que diz respeito a São Paulo. Isso desanima. O Pedro Lyra é um poeta sério, um estudioso sério. Esse trabalho seu tem de ser revisto e reavaliado para uma nova edição, se é que ele tenha algum compromisso com a história literária recente. E eu, sinceramente, acredito que ele tenha.