O POETA EM PORTUGAL
Cláudio Tognolli, escritor, jornalista, professor da Escola de Comunicações e Arte da USP.
O poeta Álvaro Alves de Faria, peixe prateado da Geração 60 de São Paulo, é homem de prodigiosa quietude. Pouco fala, muitíssimo escreve. Tosquia as palavras meses a fio. Poeta raro, não se compraz com uma mídia deliberadamente genuflexa, sempre de joelhos a anglicismos e americanismos, vomitados todos os dias como o nec plus ultra do universo. Talvez Álvaro seja um dos últimos nacionalistas, vivendo dentre críticos de poesia em contínua inflação, mais competitivos que competentes. Gente de malas inchadas de trocas de favores, prebendas e sinecuras específicas.
Mas quem disse que Álvaro precisa de encômios desta fina flor de nossa mídia? Álvaro lhes dá as costas, pega sua pena de poeta e caminha para a Europa. Deixa para trás um socavão de gramíneas de redação, assim digamos: gente que troca adjetivos por ingressos de cinema, advérbios de modo por acesso a festas do jet set. Barganham, também, senhas de acesso às castas superiores, mas pagando com uma moeda falsa: afinal, até os favores devolvem com a pena da galhofa, a tinta da melancolia e rabugens de pessimismo.
O preço pago por ignorar tais imbecilizados é o opróbrio. A maestria de Álvaro, ora a brilhar na Europa, foi sempre saber que há ar de respirar fora desta terra de vastos desertos e charnecas culturais. A Europa reconhece um Álvaro por ler sua lavra a partir da força mais incomum de que um poeta pode dispor: o disparar vulcânico de palavras, escritas no Brooklin, em São Paulo, e que explodiram na cabeça de algum leitor nos recônditos de Coimbra. Algum português, quem sabe angustiado, buscando consolo poético num impenitente passeio dentre livrarias, encontrou Álvaro e seu verbo. Contou para outro. Que contou para outro. E assim de fez: Álvaro fez seu nome por ressonância. Não será essa toda a honradez que se espera do método de um poeta?
-Por que essa busca da poesia em Portugal ?
-Ocorre que vou a Portugal em busca da poesia que não encontro mais no Brasil. Cansei da mediocridade reinante. Cansei dessa invenção de “poetas” e “escritores” do dia para noite pela chamada mídia cultural. Uma mídia cultural que de cultural não tem absolutamente nada. Sempre será preciso ressalvar as exceções. Não dá e nem quero generalizar. Mas o que ocorre atualmente na literatura brasileira – especialmente na poesia – é constrangedor, é deprimente, é angustiante. Assim, quero sair daqui. Quero respirar. Quero ir embora.
-O que significa isso ?
-Significa que no que diz respeito à poesia brasileira eu me considero hoje um exiliado. Graças a Deus. Não quero ser confundido nessa paisagem obscura de mentiras e louvações. Não. Eu sou poeta. Só isso. Quero exercer esse direito de ser poeta, embora o país feche as portas à poesia.
-O que é que você encontra na poesia de Portugal que – como você diz – não existe mais no Brasil ?
-Respeito e seriedade. Pessoas que sabem o que estão fazendo. Uma crítica consciente, honesta. Uma poesia de grandeza, feita do homem para o homem. Não vivo em Portugal. Não sei exatamente como seria se lá vivesse. Mas as temporadas que passo lá, especialmente em eventos culturais, me dão a dimensão do que de fato é a literatura, do que de fato é a poesia. O que é esse descobrimento da própria existência por meio da literatura produzida sem invenções, sem as atitudes inconsequentes lastimáveis que povoam o jornalismo cultural brasileiro, uma crítica feita de agrado entre amigos, na qual a mediocridade tem seu espaço garantido. É um engodo. Qualquer país civilizado teria vergonha.
-Isso me parece ressentimento…
-Mas não nego que eu seja uma pessoa ressentida. Sou mesmo. Não há porque esconder isso. Mas é um ressentimento que eu quero chamar de indignação. Felizmente eu ainda consigo me indignar. Eu vivo num país de víboras. Um país feito de mentiras. Por exemplo: eu ouvi um discurso durante 25 anos e no fim os que discursavam se traíram a si mesmos. Ou então foi tudo mentira. Eu vivo num país onde até guerrilheiro do Araguaia se transforma em bobo na corte. Eu não consigo compreender como é que certas pessoas não se olham no espelho. Não se olham nos próprios olhos. Eu vivo num país de equívocos, onde o que vale é a lei dos espertos…
-Mas o que é que isso tem a ver com a poesia?
-Tem tudo a ver. A gente é resultado disso tudo. A poesia entra nisso. A literatura entra nisso. De forma que num país de equívocos talvez seja até natural que o jornalismo cultural – por exemplo – seja exatamente isso que é. Uma coisa detestável feita em confrarias deploráveis. Todos os dias as páginas culturais dos suplementos dos jornais trazem as materinhas encomendadas. Aquela mesma coisa de sempre. Aquela mesma conversa de sempre. Aqueles mesmos caras de sempre. Não dá para conviver com isso. Não é possível conviver com isso.
-Portugal é a saída?
-Pelo menos para mim, para minha poesia, para a poesia que venho produzindo nos últimos anos. Repito: busco em Portugal a poesia que me falta aqui. Este é um país árido de pensamentos. É o salve-se quem puder. O país dos fracassados que habitam o poder. Parece uma norma: quem perde eleição vira ministro. Este é o país da poesia sem consistência alguma, que não resiste a uma crítica razoável. Cansei dessa inversão de valores. Aliás inversão de valores que atinge a praticamente tudo neste país infeliz. O Brasil é um país sem sorte.
-Então por que você não vai embora do país?
-Não é essa a questão. Estamos falando em literatura. E no que diz respeito à literatura estou fora. No que diz respeito à poesia estou mais longe ainda. Não tenho mais nada a ver com a poesia brasileira. Mas, a bem da verdade, isso não significa absolutamente nada. Não tenho a pretensão de que possa significar alguma coisa. O que desejo é distância de muita gente.
-Bem vamos falar um pouco desse novo livro publicado em Portugal, “Sete Anos de Pastor”…
-O livro foi escrito todo com a linguagem da poesia portuguesa do século 15, 16. Fui bucar essa poesia na Lírica de Camões, especialmente na figura do Pastor do grande poeta de Portugal. Também busquei a figura do Pastor dos Autos de Gil Vicente e finalmente em O Guardador de Rebanhos, de Fernando Pessoa. Fui lá buscar a poesia que me falta aqui. Quer dizer, é simples: fui buscar poesia onde existe poesia. Nem mais, nem menos. Fui lá buscar minha própria vida, minha existência, o meu passado, minha reminiscência…
-Como assim?
-Meus pais são portugueses. Minha mãe de Anadia, meu pai de Angola. Descubro agora que minha vida está lá, minha raiz, minha paisagem mais íntima. Está lá em Portugal o ar que tento ainda respirar. Em suma, está lá minha poesia.
-Li uma declaração sua na qual você diz que não é mais um poeta brasileiro. E isso mesmo?
-É isso. Sou um exilado da poesia brasileira. O que, também, convenhamos, não vai mudar em nada a ordem das coisas. Em termos de poesia eu me sinto um estrangeiro de mim no Brasil.
-Eu vejo nisso apenas uma afirmação poética…
-Pode ser uma afirmação poética, mas é, também, uma afirmação verdadeira, até mesmo dolorida. Eu gostaria de falar sobre poesia com a linguagem da poesia, não com esta linguagem árida, até mesmo agressiva. Mas não é possível. Sou uma pessoa veemente. Não sou nada razoável. De forma que eu me atiro nas coisas para afundar de vez, para viver o que me cabe viver, para sentir a intensidade das coisas. Ser um estrangeiro de si mesmo é também uma espécie de suicídio lento. Não quero uma poesia suicida. Quero uma poesia viva, uma poesia honesta, uma poesia que venha da terra, do gesto, da palavra. Uma poesia que seja poesia, não uma mentira.
-Isso também soa como uma atitude política…
-Mas viver é uma atitude política. Ou não é ? Não é frase feita, não. É uma atitude que se impõe, que se realiza ao longo do tempo. Que se faz e se desdobra, se alimenta, se mata também. E essa atitude política pode também ser uma atitude poética, pela poesia.
-Isso tudo me parece uma espécie de sacerdócio…
-Você tem razão. Alguém já disse que a poesia é um sacerdócio. Neste livro “Sete anos de pastor” há um poema que fala disso. “Sempre me disseram que a poesia é sacerdócio/ por isso sempre andei com uma extrema-unção no bolso”. Quando eu tinha 20 anos eu pensava que a poesia podia salvar o mundo. Fui preso cinco vezes pelo Dops porque declamava poemas no Viaduto do Chá. Hoje eu não acredito mais que a poesia possa salvar o mundo. Mas pode ajudar o homem a viver, a ter sensibilidade pelas coisas, a ser solidário, a se encantar.
-Não seria melhor se a gente estivesse aqui comentando sua literatura, sua poesia, sua trajetória poética, sem essa gravidade?
-Seria, mas isso é impossível neste momento. Não dá para fugir desse assunto. É impossível, pelo menos para mim, não revelar minha indignação diante do que ocorre na área cultural deste país.
-Como é que, afinal, essa trajetória começou?
-Começou quando eu tinha onze anos. Com onze anos eu escrevi meu primeiro poema. Um poema dedicado ao meu cão. Algumas quadras de sete sílabas, rimas em “ar” e “ão”. Em sete sílabas e eu nem sabia o que era um verso de sete sílabas. O poema foi publicado no jornalzinho de uma associação de moradores do bairro do Brooklin, em São Paulo. Eu nem acreditava. Eu tinha onze anos. Depois as coisas foram acontecendo. E ainda criança, acabei escrevendo “reportagens” para o jornalzinho. Na verdade, foi uma infância difícil. Com doze anos eu era jardineiro no mesmo bairro. E também fazia carreto nas feiras-livres, onde eu pegava os restos para levar para casa. Mas eu me lembro disso hoje com muita ternura. A palavra certa é ternura. Me comove lembrar disso tudo. Depois foi seguir. Operário numa fábrica de canetas, depois contínuo no jornal Correio Paulistano, que ficava na rua Líbero Badaró. Depois fui indo, estudando à noite, sempre à noite e sempre pagando, porque na USP eu sempre fui o que na época se chamava “excedente”. Já na adolescência descobri Álvares de Azevedo. Depois Augusto dos Anjos. Leitura de biografias dramáticas de santos católicos. E ainda na adolescência, o jornalismo, especialmente nos Diários Associados, que ficava na rua Sete de Abril, 230. Depois foi seguir. E sigo até hoje, dentro da possibilidade de seguir. Só hoje, a esta altura da vida, eu compreendo melhor essas coisas.
-E a trajetória em relação à sua obra? Aliás, você é o único poeta da Geração 60 de poetas de São Paulo que partiu para outros gêneros literários, publicando, além da poesia, romances, novelas, livros de crônica e ensaio literário. Como é que é isso?
-Essa trajetória começou com a publicação do livro adolescente “Noturno Maior”, em 1963. Depois os livros foram nascendo. Perdi sete anos na minha vida em relação à literatura. Fiquei sete anos sem escrever nada. Sem publicar nada. Isso eu devo à última prisão pelo Dops nos anos 60, por causa dos poemas do Sermão do Viaduto, que eu dizia no viaduto do Chá, no centro de São Paulo, quando o viaduto do Chá era o principal cartão-postal da cidade. Foi medo mesmo. Sou autor de mais de 40 livros, a maior parte de poesia. Sou poeta. Um poeta que de vez em quando escreve outros gêneros literários. Tenho até duas peças teatrais, acidentais. Uma delas sobre a vida do poeta universal brasileiro Augusto dos Anjos, chamada “Vida, Paixão e Morte de Augusto dos Anjos, poeta e cidadão brasileiro”, escrita em parceria com o ator Rofran Fernandes, já falecido. A outra, “Salve-se quem puder que o jardim está pegando fogo” ganhou o Prêmio Anchieta, um dos principais do teatro nos anos 70. A peça foi proibida dias antes de sua estreia. Ficou seis anos na censura.
-Vamos a uma pergunta clássica entre os poetas e os que cuidam da poesia: A poesia já morreu?
-Não, ainda não morreu, mas é assassinada todos os dias por estas plagas tropicais de muitos enganos e equívocos devidamente amparados pela chamada mídia cultural. Assassinada todos os dias por alguns medíocres que não sabem o que estão fazendo, nunca saberão por uma razão simples: não são poetas. São enganadores com espaço garantido nos suplementos culturais. Aquela coisa que causa náuseas. Aquela confraria que se joga confete todos os dias, em artigos cheio de louvações. Isso dá bem a medida das coisas e, neste caso particular, dá bem a medida dos suplementos que se dizem culturais na imprensa brasileira.