Poeta
Álvaro
Alves
de Faria

Canal do poeta

Por Graça Capinha 1

"É NULO PENSAR QUE A POESIA POSSA"
Parte 1 de 3

Graça Capinha
Da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Portugal

Por ocasião do lançamento de
20 Poemas quase Líricos e algumas Canções para Coimbra,
de Álvaro Alves de Faria.
(Coimbra: Editora A Mar Arte, 1999)

Álvaro Alves de Faria é um dos autores de língua portuguesa que os Encontros Internacionais de Poetas de Coimbra trouxeram do Brasil até este nosso outro lado. O convite do Grupo de Estudos Anglo-Americanos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra para o III Encontro, em 1998, deu-nos a oportunidade de ouvir de viva voz a voz de Álvaro Alves de Faria, sem nunca imaginar que daí resultasse um novo livro de poemas: 20 Poemas Quase Líricos e Algumas Canções para Coimbra. Foi assim este também um Encontro que deu a possibilidade à possibilidade do acto criativo.

Premiado várias vezes no seu país, Álvaro Alves de Faria, jornalista, romancista, dramaturgo, crítico e ensaísta, além de poeta, fez parte da chamada “Geração de 60” no Brasil, uma geração bem diversificada do ponto de vista das estratégias retóricas e dos objectivos poéticos, mas que teve em comum, como um dos seus principais méritos, o trazer a poesia para o domínio público através das leituras públicas em universidades, em teatros, em bares e cafés. Na altura, Alves de Faria tornou-se sobretudo conhecido por se atrever um pouco mais nesse esforço em arrancar o poema ao espaço meramente intelectual, trazendo-o para as ruas de São Paulo: O Sermão do Viaduto, tal como o nome indica, era lido num viaduto, o do Chá, em plena ditadura militar brasileira, terminando os recitais quase sempre na prisão do poeta pela polícia política. Trinta e alguns anos volvidos, é claramente visível que a voz já se marcava nestes poemas a que talvez pudéssemos chamar de juventude, sem ser jovens: um pendor meditativo e existencialista circulando sob a grande presença da morte, numa formulação, sempre à beira do surrealismo, que oscila entre a elegia e o sermão, entre o pathos do grotesco e da ironia:

Que se calem os que não sabem da missão.

Existe em mim o ódio aos regimes e

sei que o mundo é mais triste.

Eu aglomerei a multidão e disse que é

tudo mentira, e procurei na grande noite

a grande afinidade, e vi o início terminado.

Eu tive a iniciativa de proibir e

fiquei na praça, e da praça nunca mais

eu vou sair. Eu tenho em mim os detalhes

do Apocalipse. Coloquei minha solidão

numa estufa e vi crescer uma noite,

na procura da suprema libertação.

 

I

O relógio é um órgão metálico em

nosso pulso. Todos ergam as mãos e

chorem as mães: o sermão do viaduto

vai começar: o trigo subirá à pedra

para a espiga do homem, e existirá

no rosto das estátuas. Eu exigirei

o retorno dos fugitivos da vida.

Nós vamos amarrar símbolos de ferro

nos pés, e gerar outro sentido da planta.

É preciso cavoucar no silêncio que se fez

na língua da escravidão: vamos à passagem,

ao deserto, expulsar do caminho a

sombra dos cactus e cobrir as chagas

com o coração.

Sim, eu amarei com a dor de um parto, e

estarei pleno das minhas convicções

para arranhar os grandes chifres dos enganados e

chorar um dilúvio em outra época

para erguer a estrela que caiu.

 [O Sermão do Viaduto (30 anos depois). São Paulo: Traço Ed., 1997, pp.42-43]

 Esta é uma poesia que exige que se gerem sentidos outros, que se destruam as leis com que convencionalmente estabelecemos relações entre as palavras e com que nos oferecemos a construção de uma imagem reconhecível de um mundo, desta forma, legitimado nas suas hierarquias de poder. Uma poesia que não permite que nenhuma imagem deste mundo nos possa consolar, como podemos ler num poema de Lindas Mulheres Mortas:

Oração

 A puta reza

na Igreja da Consolação,

mas não há consolo

nessas estátuas de santos,

santas, anjos,

vitrais, hóstias,

não há consolo

não haverá consolo.

A puta reza

palavras comoventes

e depois se atira

sob o automóvel

oficial

do Governo do Estado.

[Lindas Mulheres Mortas. São Paulo: Traço Ed., 1990, p.44]

 

As formas alternativas e/ou emancipatórias de olhar o mundo só podem inventar-se (“experimentar-se”) na forma, na linguagem com que o referimos e que, pela mudança, exige que o refiramos de outro modo. Essa é, para Alves de Faria, a vanguarda universal possível: aí reside o poder emancipatório da arte e da poesia. E é essa universalidade, formal e cultural, que me parece apenas justo reconhecer neste autor já traduzido para o inglês, o espanhol, o japonês e o servo-croata. Muitos são os diálogos que o poeta estabelecerá com outras vozes de outros lugares: vozes como as de Pound, Rimbaud, Plath, Eliot, Borges, Espanca ou Pessoa. Mas tratam-se de diálogos que partem sempre do seu localismo, da sua especificidade de brasileiro, do particularismo da sua tradição literária em que sobretudo a “Geração de 45” e os grandes modernistas são presença no jogo com as outras tradições. A crítica mordaz hiperboliza muitas vezes a voz do Padre António Vieira que, deste modo, se faz ouvir como eco no tom da alegoria e do sermão – o do viaduto, mas também o dos flashes do quotidiano de Mulheres do SHOPPING

As formigas

 As formigas tecem uma paisagem na folha,

abrem um buraco

com dentes finíssimos

e desenham manchas no infinito.

As formigas caminham em filas intermináveis

e constroem casas impossíveis

sem varanda e sem jardim.

Quando chove,

as formigas rezam

e dizem palavras que as próprias

formigas não entendem.

As pernas das formigas

são pequenos pedaços de celofane

que cavoucam a terra

e trituram uma maçã.

As formigas cantam o hino nacional do Brasil

e realizam paradas militares

com tanques e cães amestrados.

As formigas se reúnem todas as tardes

e tomam decisões comunicadas por ofício

ao presidente da República.

As formigas adormecem no Inverno.

E sempre sentem saudade,

mas nunca sabem de quê

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