Poeta
Álvaro
Alves
de Faria

Canal do poeta

Revista TRIPLOV 2

10. J.R. – Álvaro, falemos então deste teu novo livro “Três Sentimentos em Idanha e Outros poemas portugueses”. Como surgiu, foi planeado ou te inundou e arrebatou sem que o pudesses negar?

A.A.F. – Não, o livro não foi planeado. Como você diz, essa poesia me inundou e arrebatou. Fui convidado por Graça Capinha, em 2005, a participar das comemorações dos 800 anos de Idanha-a-Nova, ao lado de Vasco Graça Moura, Nuno Júdice, Ana Luísa Amaral e Fernando Aguiar. Encantei-me com a Vila na Beira-Baixa. Depois do evento, Graça Capinha organizou a antologia “As Pedras dos Templários”, com poemas dedicados a Idanha.

Já no Brasil escrevi os três poemas que dão nome ao livro. E a seguir percebi que não eram somente três poemas para uma antologia. Foi em Idanha que comecei a escrever o livro “A Memória do Pai”, o primeiro poema escrito na madrugada de 23 de maio de 2005, no hotel. Quando o livro foi publicado, fiz algumas dedicatórias, entre elas esta: “Ao meu pai, Álvaro, que nasceu no Lobito, em Angola, no dia 9 de Julho de 1914, e que depois de morrer no dia 23 de Maio de 1973, em São Paulo, Brasil, levou-me a descobrir Portugal, a começar por Coimbra. Àqueles senhores e senhoras sentados junto à porta de suas casas, no entardecer de um domingo, dia 22 de Maio, em 2005, em Idanha-a-Nova, entre os quais vi meu pai numa imagem que nunca mais vou esquecer, ali sentado entre eles, vestido com seu paletó azul”. Só depois me dei conta de que o primeiro poema foi escrito num dia 23 de Maio, data da morte de meu pai. Acho que isso pode explicar tudo. Depois de “A Memória do Pai” outros livros meus foram publicados em Portugal. Mas os três poemas estavam guardados a espera de se transformar também num livro, o que acabou por acontecer. 

 

11. J.R. – Porquê a recorrência à figura tutelar do pai, não só no poema com que abres este livro, mas em outros, tendo em conta que em 2006 publicaste em Portugal, pela Palimage, o livro “A Memória do Pai”?

A.A.F. – Meu pai me ensinou tudo. E eu não soube compreendê-lo. Só fui compreendê-lo depois que ele se foi. Desde então esse convívio tem sido constante. Sempre que estou em Portugal, meu pai está comigo, sempre em algum lugar. Vejo-o sempre. Foi assim que começou o primeiro livro que dediquei a Coimbra, quando, de madrugada, ao atravessar a Ponte de Santa Clara, vi meu pai junto a mim. Fui tomado de uma emoção que estava muito além de mim, de minha vida presente. Ao chegar ao hotel escrevi então o primeiro poema de “20 poemas quase líricos e algumas canções para Coimbra”, onde descrevo esse fato. Claro que muitos estarão me chamando de louco. Mas eu quero dizer que sou mesmo louco, muito além de qualquer outra lucidez. Hoje meu pai é minha referência poética em Portugal. Sei que é difícil explicar coisas assim. Devo ao meu pai esta descoberta. Conheço tudo em Portugal, até os lugares onde nunca estive. Mas ao chegar nesses lugares tudo me é familiar, tudo me é conhecido, como se lá já tivesse vivido. Faltava-me isso para completar a poesia que faço agora, com minhas raízes, de meu pai, de minha mãe, dessa terra onde vive meu passado, outra vida.  

 

12. J.R. – Como vês esse “mágico” cruzamento entre a religiosidade e a cultura popular ou pagã, caso muito evidente nestas maravilhosas terras de Idanha e, como isso influencia a tua poesia ou, neste caso concreto, influenciou o(s) poema(s) “Três Sentimentos em Idanha”?

A.A.F. – Você utilizou a palavra certa, ao dizer “mágico”. Idanha é uma Vila iniciática. Para iniciados. Tanto que ela entrou na novela “Cartas de Abril para Júlia”, que é uma narrativa não somente literária, basta saber sentir aquela viagem do personagem dentro de si mesmo, em busca da mulher amada, a miragem de sentimentos que vêm de outros tempos, de outras existências. Idanha está lá, junto a terras portuguesas e espanholas, essas terras com gosto de espanto e descoberta. Desde que conheci Idanha ela vive em mim, a trazer-me a palavra que me falta para concluir um poema. Uma palavra para dizer a própria palavra. As pedras das palavras. As palavras das pedras.

 

13. J.R. – Ainda nesta primeira parte do livro, no(s) poema(s) “Três Sentimentos em Idanha”, dizes na última estrofe que,  É preciso fechar o tempo como se fecha uma casa. Sentes que essa tua procura através da “poesia portuguesa” e, a afirmação é minha, aliás, num dos poemas dizes mesmo, Os cantares de poetas antigos cantam em mim como castanhas que ardem nas noites de frio, derivará precisamente do facto de a tua memória das raízes estar comprometida, uma vez que esse tempo que buscas com algum desespero, não foi fechado, pois não é possível fechá-lo?  

A.A.F. – Não foi fechado e não se fechará nunca. Porque a vida, como a poesia, é isso mesmo, essa viagem que não termina, que não acaba nunca. Já os cantares de poetas antigos são verdadeiros, porque me habitam desde que nasci, desde o primeiro poema que escrevi com 11 anos de idade. Mas foi preciso esperar até o Encontro Internacional de Poetas, em Coimbra, para que tudo se revelasse como se revelou. Então os cantares dos poetas antigos portugueses se mostraram cada vez mais nítidos, mostrando-me o caminho a seguir, como uma peregrinação em mim mesmo, em busca das castanhas que ardem nas noites de frio, nas mãos da senhora da rua São Nicolau, em Lisboa. Nada acontece por acaso. Não existe acaso em nada. Não existe coincidência em nada. As coisas são como são. Este tempo de procuras nunca se fechará. Não há como evitar – e nem o quero – a poesia de Portugal em mim. Ao escrever um poema sem que eu mesmo queira, as palavras portuguesas vão tomando o espaço do poema, com seu ritmo, sua música e até rimas, aquelas que me nascem no poema de maneira natural, as rimas de Camões, a narrativa de Fernando Pessoa e tantos outros poetas de outros tempos de Portugal, aquelas palavras que eu ouvia no rádio quando criança, nos programas portugueses, os fados de Portugal, a saudade de meus pais. E eu ali, criança, ouvindo tudo aquilo sem saber nem imaginar o que me guardaria a vida mais à frente, muito à frente.  

 

14. J.R. – Porque é que cada vez mais afirmas não ser um poeta e como explicas a afirmação: Tenho pensado em desatinos,/como por exemplo/matar todos os poemas(…)deixando só uma coisa oca no lugar,/o poema mais perfeito? 

 A.A.F. – No fundo, no fundo, acho que o poema mais perfeito é mesmo o nada. O nada absoluto. O nada completo, concluído. Sempre me afirmo não ser mais um poeta, é verdade, por me deparar com que me deparo atualmente. Quero distância disso. Muita distância.

 

15. J.R. – O que significa para ti, quer seja ao nível da tua poesia, quer seja ao nível do ser humano que procura essa memória de suas raízes, numa espécie de demanda órfica, esta bela cidade de Pedro & Inês, a quem também em 2007 dedicaste o livro “Inês” e neste livro, belos poemas como, Três Poemas Diante da Sé Velha, Em Coimbra, Santa Clara ou As águas do Rio?

A.A.F. – Significa minha existência inteira. Significa, sim, a minha própria memória. A memória da memória, como profere Graça Capinha. Esses três poemas que você cita fazem parte de mim, porque tudo começou em Coimbra. Essa descoberta ou redescoberta de mim começou em Coimbra. Há o Álvaro poeta antes e depois de Coimbra. Basta ler “Inês” para sentir onde chega minha poesia, o meu poema, a minha palavra mais veemente no que diz respeito à poesia de Portugal. É o despojamento completo. É a palavra inteira. É minha história.

 

16. J.R. – Será que este livro já é um ponto de chegada, com tudo o que isso implica, uma vez que continuando a ter poemas que cantam Inês, Coimbra, Lisboa, Pessoa, etc, temas e figuras a que já dedicaste praticamente livros inteiros, fazes agora uma espécie de pequena viagem a Portugal, como que o abraçando e enlaçando de Norte a Sul, ao mesmo tempo que nos apresentas poemas, como os poemas Pátria, ou Dia 14, em que tanto poderemos conceber a desilusão perante o Brasil e a poesia brasileira, como poderemos conceber o malogro da procura através da língua portuguesa ou até, a derrota e a rendição [A vida não me valeu ou Penso matar-me na última palavra,/como se para salvar-me de mim ] perante  o malogro ou impossibilidade, da poesia?  

A.A.F. – Não, este livro não é um ponto de chegada. É só mais um ponto de partida. Tudo de Portugal em mim, até as pequenas viagens, representam uma longa viagem. Os temas são decorrentes porque, no meu caso, a poesia me pede isso. Penso mesmo matar-me na última palavra. Mas não há derrota nem rendição. Essas palavras não me dizem respeito como poeta. Como pessoa é possível que seja assim, porque eu vivo num país perverso. Como cidadão já me rendi há muito tempo e aí sim posso dizer que a vida não me valeu. Hoje penso como escrevo num dos poemas do livro, que a vida só vale a pena quando a alma é bem pequena.

 

17. J.R. – Como explicar a contradição entre os versos, Sou aquele homem que saiu para dar uma volta/ e esqueceu de regressar, quando o que constatamos é um permanente regresso do poeta Álvaro Alves de Faria, com a sua magnífica poesia, agora, mais uma vez, com este excelente “Três Poemas em Idanha e Outros Poemas Portugueses”, sem dúvida, um dos melhores e mais conseguidos livros que já publicaste em Portugal?

A.A.F. – Esse poema “Aquele homem” é hoje o meu retrato mais perfeito. É o que sou exatamente. Eu saí e esqueci de regressar. Mas esse esquecimento não significa se anular diante e dentro da vida e da poesia. Não sei se este livro é um dos melhores que publiquei em Portugal, mas tuas palavras significam um alento. Porque nessa poesia que ainda existe em mim, essa poesia de Portugal, é o que me faz ainda insistir. É o que me faz ainda seguir. Mesmo diante do que vejo à minha frente, pelo menos em meu país, a poesia destruída por alguns vândalos. Os vândalos estão em praticamente todos os setores da vida brasileira.

 

18. J.R. – Para terminar, três perguntas, começando por uma mais do que clássica, que hoje se coloca cada vez mais aos poetas e aos que ainda crêem na poesia: para que serve hoje a poesia? A poesia já pereceu? Ou melhor, pois é tão poética esta palavra, a poesia “desviveu” definitivamente perante este(s) mundo(s) que o homem criou e que já não consegue submeter ao verbo?

A.A.F. – Eu também me pergunto sempre para que serve a poesia. Acho que não serve para nada. Se a poesia já morreu também não sei, mas sei que morre e renasce todos os dias. Eu respondo colocando aqui um pequeno poema chamado “Verbo”, que pertence a um livro ainda inédito: “Eu poemo/ tu poemas/ ele poema/ nós poemamos/ vós poemais/ eles poemenos”.  

 

19. J.R. – Álvaro, apesar de todo o sofrimento, mas simultaneamente deleite, não sei se compensação, que a poesia ao longo de décadas te deu, hoje, e pensando neste já distante “Sermão do Viaduto” e ainda com muitos poemas esperando a boca do sol, valeu mesmo a pena?

A.A.F. – Como é difícil responder isso, meu caro amigo. Como é difícil. Quando eu me lembro de “O Sermão do Viaduto” e tudo o que aconteceu depois, eu me pergunto diante do quadro atual: “Então, foi para isto?”. Eu me lembro de amigos que se suicidaram no medo e no pavor e me pergunto: “Então, foi para isto?”. Eu me lembro da angústia e das feridas, do sangue, da dor e me pergunto: “Então, foi para isto?”. Eu me lembro da solidão absoluta e me pergunto: “Então, foi para isto?”. Por isso não sei como responder, meu amigo. Ou talvez não queira responder, não para você, mas para mim.

 

20. J.R. – Agradecendo desde já as tuas palavras, que gostarias de proferir ou proclamar e que não te tenha sido possível, por não te ter perguntado?

A.A.F. – Acredito que tenha falado o que me foi possível falar. Na verdade, diante de um mundo completamente brutalizado, quase nada mais há a dizer. Mas eu insisto. Eu sou insistente. Eu ainda vou acordar.

João Rasteiro
Coimbra, 21 de Agosto de 2011

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