ENTREVISTA COM O POETA - Parte 4
ZULEIKA DOS REIS, poeta, São Paulo, SP
P.Após o livro “Inês”, você tem em mente a escrita poética de outra saga amorosa, quem sabe sobre a história de algum outro Pedro?
AAF – Não Zuleika, não. As coisas ocorrem. Não planejo nada. Tenho sim, já escrito, um livro sobre essa saga amorosa a que você se refere. Mas prefiro não falar nele agora, pelo menos agora. Uma história brasileira. Uma história do Brasil. Não chegou ainda a hora de publicá-lo. Tem hora certa para tudo.
P.“Dias perversos”, um de seus romances, foi publicado em 1994.Você se pretende e se imagina, ainda, a escrever e a publicar romances?
AAF – Tenho alguns romances publicados. Um deles saiu no Japão. Isso é uma loucura. Tenho três romances na gaveta. Mas é sempre preciso dizer que sou um ex-poeta. Mais nada. Só um ex-poeta. Alguém que se dedicou à poesia, não ao romance. Mas tenho três romances na gaveta. E, sinceramente, romances bons. No entanto, não me atrevo a mostrá-los. Nem sei ao certo a razão. Estão guardados. Melhor dizendo, estão escondidos. Sinceramente, acredito que escondido estão bem. Não pretendo sair por aí oferecendo meu livro às editoras. Sou muito tímido para essas coisas. Nunca consegui fazer isso. Mas não sou contra os que o fazem. Não. Muito pelo contrário. Acho que tem de se ir mesmo à batalha. Mas não é meu feitio. As coisas vão sendo escritas e guardadas. Tenho também a vida escondida numa gaveta. De repente ela escapa.
ANTONIO CARLOS SECCHIN, poeta, ensaísta, membro da Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro.
P.Peço que fale sobre sua consolidada presença no mercado editorial português. Quantos títulos ? Quais as circunstâncias?
AAF – Caro Secchin: tenho 19 leitores em Portugal. O que para mim já representa muito. Mas a verdade é que, a partir de 1999, publiquei sete livros de poemas, seis deles em Portugal. Eu me considero em poeta português. É difícil falar isso a um poeta como você, da Academia Brasileira de Letras. Pela ordem, meus livros em Portugal são, até agora “20 poemas quase líricos e algumas canções para Coimbra” (1999), “Poemas portugueses” (2002), “Sete anos de pastor” (2005), “A memória do pai” (2006), “Inês” (2007) e “Livro de Sophia” (2008). As circunstâncias desses livros em Portugal, minha opção poética e existencial, é o desencantamento com o que ocorre no Brasil na área da poesia, onde reina uma mediocridade que dá medo e que representa uma verdadeira afronta aos que ainda conseguem pensar neste país. Não generalizo, nem posso, por uma questão de honestidade. O Brasil tem, sim, excelentes poetas. Mas o que reina sob o amparo de uma mídia cultural deprimente, é o medíocre. O que reina é o circunstancial. É a poesia sem consistência alguma. Aquela “poesia” que, na verdade, não existe, que representa somente uma mancha na tradição poética brasileira. Diante desse cenário, fugi para Portugal. Fui buscar lá a poesia que não vejo mais no Brasil, descontando, sempre, as exceções. Como vê, as circunstâncias são lastimáveis. Minha atitude é de defesa. Quero-me poeta. Desejo-me poeta. Sou um poeta português no Brasil. Minha poesia está em Portugal, onde vive minha memória, onde está meu passado, onde está a outra vida, as outras vidas. Está tudo lá.
P.Se tivesse de resumir os aspectos essenciais de sua obra, tanto no que se refere a temas recorrentes, quanto a características formais, o que de destacaria?
AAF – Eu destacaria minha preocupação até exagerada em relação à elaboração do poema, ao ritmo do poema, à música do poema, aos sons das palavras, a colocação da palavra dentro do poema. Eu destacaria, também, a questão poética mesmo, a poesia em si, essa poesia que é brutalizada todos os dias por alguns vândalos. O corpo gráfico do poema é importante na sua estrutura como peça literária. Mas não pode ser tudo. Não. Tem de ser uma parte desse poema construído. Uma parte. Não dá para olhar só essa parte gráfica do poema deixando para um plano inferior o que o poema tem a transmitir ao seu leitor. Os temas recorrentes estão aí, dentro da vida. Dentro do ato de existir, de respirar, de enlouquecer, de silenciar, de ausentar-se. Os temas estão aí, basta ter olhos e ver. Os temas calam fundo em todas as esquinas, em todos os livros, em todos os poetas verdadeiros, aqueles que têm na palavra o seu ofício de vida e de fé. Os temas estão no gesto, na negação, no grito, na dor. Os temas estão no invisível, que só um poeta consegue ver na fotografia de sua intimidade. O poema não pode ser uma construção hermética, como muitos desejam. Não pode ser uma pedra de gelo. Não pode se negar à emoção, ao sentimento da própria poesia, do próprio poema. Não pode se negar a ser ele mesmo, um poema, num um amontoado de palavras num jogo sem compromisso com a própria poesia. Há de se reunir no poema a palavra e sua forma. O poema pertence ao homem, assim como a poesia ainda possível, enquanto existir, até que não seja banida de vez pelo massacre constante de tudo. Assim, resumindo, eu destacaria em minha obra a própria vida, o ato de existir, de persistir. Os incautos em relação à poesia e à literatura, os aventureiros, certamente não compreenderão esta linguagem. É bom que seja assim. Não compreenderão e nunca vão compreender. A linguagem da poesia pertence a todos. Ao poeta cabe dizer. É o que tento fazer desde os 11 anos de idade, quando escrevi meu primeiro poema dedicado ao meu cão.
GRAÇA CAPINHA, poeta, ensaísta, professora de Poesia e Poética Contemporâneas da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Portugal
P.Como inscreve o seu “eu” poético numa língua entre Portugal e Brasil?
AAF – Acredito que, agora, pelo menos agora, Brasil não conta mais. O meu eu poético está em Portugal. Somente em Portugal. Cansei-me destas plagas tropicais. Cansei-me desta mentira de todos os dias. Não rezo por essa cartilha. Não me interessa mais rezar por essa cartilha. Essa poesia que tento escrever, não está aqui onde vivo. Você me fala numa língua entre Portugal e Brasil. Não sei exatamente como me situar nisso. O que sei e sinto é que me situo, sim, na poesia portuguesa, por ver e sentir nessa poesia o que existe de poético na palavra mais correta, na língua mais correta. Sinceramente, nem sei se existe o meu “eu” poético a que você se refere. Existe, na verdade, um ex-poeta brasileiro. Isso existe. Um ex-poeta que se busca numa linguagem que do Brasil desapareceu por conta da delinquência e da mediocridade reinante no país em todos os setores. Se existir um “eu” poético que me diga respeito, ele está em Portugal. E espero que continue assim.
P.Reencontrou uma memória outra num encontro outro com Portugal (nomeadamente, através da sua participação nos Encontros Internacionais de Poetas da Universidade de Coimbra)?
AAF – Sim, isso foi fundamental. De repente me vi onde sempre estive. Foi como descobrir-me nas ruas, praças, casas, pessoas, telhados, igrejas. Foi como achar-me, já que sempre andei perdido. Achar-me e descobrir-me especial e principalmente na poesia. Ler poesia portuguesa no Brasil é uma coisa, ler poesia portuguesa em Portugal é outra coisa completamente diferente. Porque, nesse momento, você se vê dentro dessa poesia, dentro dessa palavra, dentro desse ritmo poético, dentro dessa música, dentro dessas cores que até então desconhecia. Participar de um dos Encontros Internacionais de Poetas da Universidade de Coimbra, a seu convite, foi dar novo rumo à minha poesia e à minha vida pessoal. Como poeta, consegui me refazer, já que me limpei da escuridão da poesia brasileira, descontadas as exceções que existem, a bem da verdade. Limpo, mergulhei em mim mesmo, porque, com alma portuguesa, era o que tinha de fazer e isso não implica somente na questão literária. Isso implica, também, na questão da cidadania. Digamos, aqui, cidadania poética. Minha cidadania poética nada tem a ver com o Brasil. Já teve, agora não tem mais. Mesmo que eu volte a ser um poeta brasileiro, minha raiz poética está em Portugal. Em Portugal eu reaprendi a respirar. Reaprendi a viver. A poesia necessita de vida, não de imbecilidades que se tornaram rotina por aqui.
P.Quando estivemos juntos pela última vez, em Coimbra, disse-me que já não era poeta. Quer explicar agora o porquê dessa decisão?
AAF – De fato, Graça, disse-lhe que já não era poeta. Digo-lhe também agora. Sou um ex-poeta. Sou um ex-jornalista. Sou um ex-tudo. Não me interessa ser nada. A minha decisão de deixar de ser poeta é, mesmo, entregar os pontos. Representa a impotência diante de uma mediocridade sem tamanho que toma conta de tudo. Há mazela em tudo neste país em que nasci e em que vivo ainda. Só mazela. Na política, no comportamento, na palavra, na própria condução do país. Mas o que mais pesou para isso foi o cenário melancólico da literatura brasileira, particularmente no que diz respeito à poesia. Por isso fugi para Portugal. Por isso fujo sempre, em busca de ar. Em busca de vida. O sufocamento brasileiro tem um limite, pelo menos para mim. Eu me sinto, sim, um ex-poeta. Tento recomeçar minha vida de poeta em Portugal. Basta lembrar os meus últimos livros foram lançados em Portugal. O livro meu que saiu no Brasil, em São Paulo, “Babel”, representa, na verdade, uma despedida da poesia brasileira. Basta ler com atenção. É uma carta de despedida. É um longo poema de despedida. E depois tenho a impressão que perdi completamente a palavra poética brasileira, se é que ela existiu para mim. Aqui poetas são os letristas de música popular, os compositores. Um deles chega a ser chamado de “poeta de uma geração”. Isso dói. Enoja. Porque quem faz a história imediata cultural deste país é uma mídia sem compromisso com nada, que não tem conhecimento histórico com coisa nenhuma. Então a história imediata é escrita assim. E quando se chega a isso é preciso ir embora. É preciso renunciar. Eu renunciei. Não sou mais poeta. Pelo menos poeta brasileiro. Tento ser um poeta português.
RENATA PALLOTTINI, poeta, escritora, ensaísta, dramaturga, roteirista de televisão.Lecionou na USP e na Escola de Arte Dramática, São Paulo
P. A que você atribui o fato de os suplementos culturais especialmente de São Paulo e Rio de Janeiro usarem 90 por cento de seu espaço com música popular estrangeira e, eventualmente, 10 por cento com literatura, com ínfima parcela para a produção literária brasileira ?
AAF – Renata, atribuo à absoluta ignorância dessa gente. Gente que prima pela estupidez. Mas o jornalismo e, neste caso, o jornalismo cultural, reflete o próprio país. A cara do país. O espaço dado à literatura brasileira nos suplementos culturais chega a ser uma afronta. E dentro desse espaço acintoso, o que resta à poesia é de uma violência brutal para os poetas brasileiros sérios. Esse espaço é utilizado para enaltecer “poetas” medíocres, mas de tal mediocridade que assusta. Os tais “poetas” são inventados da noite para o dia e desaparecem do dia para a noite. Atribuo esse caos melancólico também à desonestidade de uma mídia que desconhece tudo, pelo menos no que diz respeito à cultura. Você fala em 90 por cento do espaço para música popular estrangeira. É assim mesmo. No que diz respeito à música popular brasileira as figuras são sempre as mesmas. É como se o país tivesse parado, estagnado. E isso também ocorre com a literatura. Nessa área, por exemplo, qualquer livrinho de subliteratura norte-americana tem espaço garantido nos suplementos. Ou então, o espaço é garantido para a mediocridade, essa mediocridade que é, na verdade, uma verdadeira quadrilha que domina o jornalismo e a universidade. Como viver num país assim ? A produção literária brasileira a que você se refere não tem vez. Não tem espaço. Esse espaço pertence às turmas. Os grupinhos que se formam em todo lugar. Mas isso não significa efervescência cultural, como já tivemos neste país. Não. É uma espécie de confrarias que se enaltecem uma às outras, com louvações deprimentes, subestimando a inteligência alheia. No final de tudo, a mídia cultural brasileira se resume nisso, nessa louvação ridícula e nessa troca de favores.
CARLOS NEJAR, poeta, romancista, ensaísta, membro da Academia Brasileira de Letras, Guarapari, Espírito Santo.
P.Qual é, de fato, sua relação com Portugal e o que, em Portugal, influenciou sua poesia atual ?
AAF – Querido Nejar: Minha relação com Portugal não é apenas literária. É, especialmente, existencial. A poesia vem daí. A minha poesia está onde vive o meu existencial, o meu passado. A minha poesia vive onde existe poesia. Como a poesia no Brasil foi assassinada pelos facínoras que se dizem poetas, fugi para Portugal em busca de mim. No Brasil existem poetas fabulosos, eu sei disso. Fabulosos. Poetas verdadeiros, honestos. Mas são engolidos por uma máquina brutal que nada respeita, que tritura as pessoas. A literatura entra nisso. Portugal não influencia minha poesia. Portugal é a minha poesia de hoje. Sou um poeta português no Brasil. O Brasil está distante de mim e eu me faço distante do Brasil. Chega um dia em que a gente cansa, especialmente exercendo a profissão que exerço, o jornalismo. E também minha vida na poesia, uma verdadeira militância. Uma militância que me custou ao longo do tempo muitos dissabores. Sei que sou amargo. Mas não há outro jeito de ser. Eu me nego a entrar nesse jogo dos que determinam os destinos, inclusive os destinos da literatura e das artes em geral. Não faz muito tempo, o nosso ex-ministro da Cultura, o compositor que é chamado de poeta, pouco se preocupava com a cultura do país. Estava mais preocupado em exercer um poder autoritário e, de alguma maneira, censurar a arte e, por decorrência, o jornalismo. Exatamente ele. É quase inacreditável. As pessoas destroem sua biografia com muita facilidade. Isso não cabe na minha cabeça. Nunca caberá. E isso tem a ver com a poesia que eu tento produzir. E a poesia que eu tento produzir não está no Brasil.
P.Qual é a posição do poeta Álvaro Alves de Faria hoje ?
AAF – Minha posição em relação à poesia é a de não ser mais poeta brasileiro. O que, convenhamos, Nejar, não significa absolutamente nada. Já minha posição política é de profunda decepção e amargura. Não sei conviver com a mentira.
ALFREDO PEREZ ALENCART, poeta e ensaísta peruano-espanhol, professor de Direito do Trabalho na Universidade de Salamanca, na Espanha.
P. Encuentro en su obra poética una variedad de registros, pero me gustaría que profundizará en ese lenguaje que tiene raízes en la más alta poesía de todos los tiempos, el lenguaje de los profetas, depurado pero con un voltaje que dura para todos los tiempos. Estimo que esa proximidad a la denuncia, ese estar cerca de los que sufren algún tipo de injusticia, no es para nada poesía panfletaría, como ciertos personajes nos quieren hacer creer. ¿Cómo reflexiona en torno al tema y cómo estima su evolución al respecto, desde “O sermao do viaducto” hasta hoy.
AAF – Caro Alfredo: O Sermão do Viaduto existe em mim até hoje. Houve, sim, um tempo em que o social fazia parte de minha poesia e ainda faz, mas com outra linguagem e em outros espaços, fora dos poemas. Nunca fui panfletário, embora nada tenha contra isso. Os poemas sociais que escrevi sempre tiveram por base a poesia. Aprendi bem isso, quando, nos anos 70, fazia parte do Centro Democrático Espanhol, que funcionava clandestinamente em São Paulo. Essa entidade fez uma homenagem a Garcia Lorca, inaugurando um monumento feito por Flávio de Carvalho a partir de um desenho do poeta. Na época, eu fui o poeta jovem que leu um poema na cerimônia atrás da Biblioteca Municipal Mário de Andrade, no centro da cidade de São Paulo. O monumento foi destruído na mesma noite pelo Comando de Caça aos Comunistas, o famigerado CCC. O monumento foi encontrado anos depois num depósito da prefeitura paulistana e colocado em outro local da cidade. Nesse tempo eu ainda acreditava. Sinto-me triste ao falar sobre isto. Quanto à “linguagem dos profetas” acredito, sim, que ela esteja em O Sermão do Viaduto, que tem, mesmo, uma linguagem bíblica. Fiz nove recitais no Viaduto do Chá, com microfone e quatro alto-falantes. Fui preso pelo Dops cinco vezes. A última prisão foi dramática. Fiquei sete anos sem escrever. Não foram sete anos sem publicar. Não. Foram sete anos sem escrever. Perdi sete anos na minha vida literária. Voltei com “4 Cantos de Pavor e alguns poemas desesperados”, que dediquei a Pablo Neruda, que eu conhecera no Centro Democrático Espanhol. O Sermão do Viaduto foi uma fase de minha vida. Foi uma fase no meu tempo. Felizmente, essas palavras do Sermão me são caras até hoje, porque representam, sim, um grito poético da dor mais profunda de um jovem de pouco mais de 20 anos que já conseguia ver essa angústia dos becos e dos marginalizados, dos que vivem à margem, dos que não têm nada. Eu vivo num país perverso. Eu vivo num mundo perverso, onde a crueldade parece ser a base de todas as coisas. É impossível não envolver a poesia nisso.